Céu negro - Parte 1



Olhei no relógio. 17:30 e ainda ouvia barulho dos alunos nos corredores. Apertei meu celular na palma da mão, como se fosse adiantar alguma coisa. “Pede pro papai vir me buscar”, foi o torpedo que enviei para meu irmão. Ele estava doente, então sem chances de eu conseguir proteção na saída. Corri os olhos através da janela e lá estavam eles, escorados na grade perto da portaria. Diogo também estava no sétimo ano, mas tinha estatura de aluno do Ensino Médio. Seus dois amigos não eram maiores que eu, mas em força com certeza o eram.
Eu, sozinho na sala de aula, cruzei os braços para me proteger do frio. Fechei os olhos e tentei me imaginar em casa, deitado na cama debaixo do cobertor, protegido dos moleques da escola. Não funcionou. Abri os olhos e ainda estava na sala, de cara para o quadro negro. Só que agora uma figura baixinha e carrancuda estava ao meu lado, encarando-me por trás dos óculos fundo de garrafa. Era Sônia, a coordenadora, o terror dos alunos do Ensino Fundamental.
- O que cê tá fazendo aqui ainda? Todo mundo sabe: professor sai, aluno sai. Regra simples. Pega seu material e vai esperar lá na portaria. Bora, menino!
Catei meus lápis em cima da mesa e joguei dentro da mochila. Pendurei uma alça no ombro e saí da sala. Não falei sobre o Diogo e a surra que eu provavelmente levaria. Isso só agravaria as coisas. Quem sabe, por um milagre, meu pai já não estaria no corredor, andando de um lado para outro, esperando para ir embora. Não estava.
Minha sala ficava no fim do corredor do bloco de aulas. Comecei a andar sem pressa, passando lentamente pelas portas abertas, observando as moças da limpeza apagarem as artes feitas pelos estudantes nas carteiras. Eu devia ser o único aluno que ainda estava no Instituto. Era sexta-feira, não haveria educação física e até a academia já tinha fechado. Só restavam alguns adultos, que pouco se importariam comigo, sem contar com Diogo e seus amigos.
Fui subindo as escadas que me levariam à portaria. Fazia um frio sobrenatural, e a grande quantidade de árvores espalhadas pela escola colaboravam para o clima. As escadas ficavam ao ar livre, recebendo apenas uma proteção superior contra a chuva. Encolhi os ombros e continuei subindo, enfrentando a vento que uivava feito lobo.
Quando cheguei no nível da portaria, encarei o portão dos alunos aberto e Diogo de costas, rindo, provavelmente contando uma piada racista. Instintivamente dei meia volta e comecei a andar. Não queria apanhar. Minhas costelas latejavam só de pensar no punho do Diogo se enterrando no meu estômago, quebrando qualquer osso pelo caminho. Apertei o passo e resolvi olhar para trás. Eles também olharam. Diogo fechou a cara e deu um tapa nas costas de cada um dos amigos. Vieram atrás de mim.
Corri em direção à biblioteca, na esperança de me esconder até o Instituto fechar. Quem sabe eu não passava a noite por ali? Gelei quando avistei a porta fechada e as luzes apagadas. Rumei pelo pátio, depois subi as escadas para o bloco 400, onde ficavam os laboratórios. Ouvi risadas atrás de mim. Tinha de me esconder. Tropecei no último degrau e deixei a mochila cair.
Passei por dentro do bloco e abri o portão que dava acesso ao gramado nos fundos do Instituto. Diogo gritou atrás de mim.
- Ô, bichinha! Cê deixou sua bolsa cair.
Desengonçado, escalei um pequeno barranco e me apoiei num velho jatobá. Parecia que todo oxigênio do mundo havia acabado. Coloquei a mão no peito, ofegando desesperadamente. Diogo passou pelo portão, sem muita pressa, com um sorriso malicioso no rosto. Segurava minha mochila em uma das mãos, balançando de um lado pro outro.
- Escutou não? - falou. - Sua bolsa caiu no chão.
Jogou com força a mochila em mim. Protegi com um dos braços e agarrei antes que atingisse meu rosto. Os amigos dele ficaram encostados no portão, fazendo o papel de vigias. Diogo foi se aproximando, até ficar a um metro de distância.
- E aí, bichinha? Tava macho hoje, falando alto e tudo mais... Aconteceu alguma coisa?
Não consegui responder. O medo, e talvez o frio, me congelaram. Só o que consegui foi erguer o corpo e tentar segurar o choro que estava por vir.
- Num vai chorar, né? - disse Diogo, agora se aproximando mais ainda.
Ele me lembrava muito o namorado da minha mãe. Pele branca, cabelo liso e castanho-escuro, penteado de qualquer jeito. A camiseta era bem apertada para mostrar os músculos que fariam um estrago no meu rosto.
- Agora cê vai aprender a calar essa boca. E também vai aprender que viadinho não fica se mostrando pra ninguém.
Diogo levantou o punho no ar. Fechei os olhos e esperei o soco. O que senti foi algo segurando meu pescoço. Será que ele iria me sufocar? Agarraram meus braços e pernas. Abri os olhos, a visão meio turva, e pude enxergar o vulto dos meninos à minha frente, andando de costas, aparentemente apavorados com alguma coisa.
Tentei ver o que me segurava, mas quando dei por mim, estava sendo puxado para baixo. Senti terra entrando pela bermuda, espinhos arranhando minha perna. Novamente fechei os olhos, e fui me deixando ser tragado. Não conseguia respirar. A pressão era imensa, e pensei que seria esmagado a qualquer momento. Foi quando o solo abaixo de mim cedeu. Com um baque surdo, caí em uma superfície lisa e gelada.
Fiquei acordado por alguns segundos antes de apagar. Acima de mim, as estrelas brilhavam fracas, pairando em um céu negro.
Ouvi chamarem meu nome. Tolos. Nunca me achariam ali.
Continua...

Alcy Filho