Os Contos de Biodak - Mundo Escuro





            Yanna abriu os olhos. Estava tudo embaçado e claro demais. Ouvia risos ao longe, crianças brincando, seu pai martelando alguma coisa lá fora. Tentou se sentar na cama, afastando o cobertor para o lado. Sentia a garganta queimando, e doía ao engolir. A visão continuava turva, mas já conseguia distinguir os móveis espalhados pelo quarto. Uma forte luz entrava pela janela, ofuscando ainda mais tudo ao redor.
            As risadas continuavam. Ela se arrastou para o lado da cama e pousou o pé no chão de madeira. Cambaleou até a porta e abriu, sentindo náuseas ao tentar enxergar com mais nitidez. Devia estar muito doente. Andou por um corredor em forma de arco, apoiando-se no tronco da gigantesca sequoia, na qual a casa havia sido construída. Na medida em que avançava, as risadas ficavam mais fortes e visão ia melhorando. Quando percebeu, já estava na cozinha da casa. Vazia. Panelas sujas na pia, restos de comida espalhados na mesa ao centro, água inundando todo o chão. Sentiu os pés queimarem ao tocar a água. Deu um salto para trás.
- Yanna, pegue logo seu prato! - uma voz inconfundível veio do fundo da cozinha. Era sua mãe.
- Mãe? Você está aí?
- Claro que estou! Vamos, pegue o prato antes que esfrie.
            A visão voltou a embaçar. Yanna sentiu fortes dores nas costas. Era como se estacas estivessem perfurando sua pele, só que de dentro pra fora. Suas pernas cederam, e foi ao chão, gemendo de dor.
- Eu... - tentou dizer. - Mãe... A dor...
- Sei, Yanna. A culpa é sua - disse a voz, soltando uma risada quase inaudível. - Eu falei que iria esfriar. Agora seu irmão terá de comer.
            Yanna olhou para o lado e viu um garoto se contorcendo no chão, a cabeça batendo repetidamente contra o piso. No mesmo instante o corpo do garoto se incendiou. As risadas se transformaram em gritos e as chamas se alastraram pela cozinha.
- A culpa é sua, toda sua! - a voz da mãe surgia de todos os lados. - Saia daqui, monstro!
            Quando o fogo alcançou as mãos de Yanna, tudo se apagou.


            Lentamente Yanna novamente abriu os olhos. Nada de visão turva, enxergava bem a floresta ao seu redor. Estava deitada sobre uma enorme rocha, coberta de grossas raízes. Ao lado corria um rio, indiferente a tudo que se passava. Pensou ter tido um horrível pesadelo, do qual não se lembrava mais. No entanto, o barulho das águas, o canto dos pássaros, as folhas caindo ao seu redor, era tudo tão familiar. Sentia-se em casa.
            Quis se levantar e ver as correntezas do rio. E foi assim que percebeu. Tentou mover suas mãos, mas no lugar delas encontrou patas com afiadas garras. Olhou para o próprio corpo e sentiu uma dor dilacerar sua garganta. A pele estava coberta de escamas avermelhadas. Seu nariz parecia pegar fogo, e a cada momento sua respiração ofegava mais e mais. Arrastou-se, arranhando as raízes com suas escamas, até chegar à beirada da rocha.
            O rio permanecia quase que inerte logo abaixo. E o reflexo na água foi o que mudou tudo. Uma criatura gigantesca encarava Yanna, com suas narinas bufando fumaça. Os olhos eram enormes e amarelados, e a boca entreaberta revelava longas e perigosas presas. Três chifres curvavam-se para trás, fixados no topo da cabeça. A floresta pareceu se calar enquanto Yanna descobria no que havia se transformado.
            Aos poucos as árvores começaram a se balançar, derrubando boa parte de suas folhas no chão. Logo todo o Oásis de Amdu dançava em reverência à Yanna, a nova Senhora dos Dragões de Amdu, sucessora de Ghiardo e última de sua espécie.
            Seus olhos, outrora cegos, agora enxergavam outro mundo, escuro, muito diferente do visto por aquela pequena menina de cabelos loiros. Ela ergueu a cabeça e bateu suas asas, levantando consigo as folhas a sua volta. Alçou voo para acima das copas das árvores, e continuou rasgando os céus, subindo até a floresta se tornar um pequeno ponto no meio do deserto. Observou toda a região ao redor, sem parar de bater as asas. Então algo explodiu em sua garganta, forçando-a soltar uma longa labareda de fogo, incendiando o céu de Amdu.
            O Oásis havia conseguido. Seu último desejo fora realizado. Yanna traria de volta o terror dos antigos dragões. O reinado dos Grandes Alados estava para recomeçar.

Alcy Filho


Imagem: venicequeenf

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