Os Contos de Biodak - Destroços e Retalhos - Parte 1






Após a fuga dos pequenos das Colinas Frias, o lugar encontrado por eles, e transformado em seu novo lar, foi a Floresta Dart-Mor. Por algum motivo os seres da Torre não ousavam enfrentar as gigantescas árvores que rondavam as Colinas. Por cerca de duzentos anos os pequenos fizeram das árvores sua nova casa, para depois migrarem à Planície Roxa e, finalmente, estabelecerem-se em Feenos, protegidos pelo Paredão de Akina.

Mas antes de os pequeninos abandonarem o território seguro de Dart-Mor, um velho contador de histórias resolveu voltar às Colinas Frias. Lugar habitado pelas mais frias e cruéis criaturas, libertadas da velha e misteriosa Torre.


Agda batia a colher de bronze contra o prato de madeira. Encostou o cotovelo sobre a mesa e repousou a cabeça sobre a mão esquerda. Começou a remexer seus legumes.

- Pare de brincar com a comida, Agda! – vociferou Tami, tentando mastigar a hortaliça que o marido havia trazido.
- Mas, mãe... – resmungou a garota, sem ânimo. – Isso tem gosto de terra!
- Bem, se você não tivesse experimentado terra, talvez gostasse um pouco mais das verduras que seu pai traz.
- Não a force, Tami... – disse Yann que não havia dito uma palavra desde que chegara da colheita. – Nem eu consigo engolir esse capim.

Ele largou o talher no prato e saiu da mesa. Passou pela porta da sala e ficou na sacada, observando as outras casas. Eram todas feitas de bambu, sustentadas pelas várias sequóias da floresta Dart-Mor. Era noite e a maioria das luzes estava ligada. Porém uma casa em especial permanecia sob total escuridão. Yann encostou os braços no parapeito e respirou o ar puro da floresta.

Tami saiu da sala e ficou observando as casas ao lado do marido. Sabia bem o que o incomodava.
- Ele insiste em voltar? – falou após um longo silêncio.

Yann abaixou a cabeça e deixou os cabelos balançarem à brisa que batia na copa da árvore.

- Ainda não acredito que ele veio de lá... – disse, observando o aparente abismo que se estendia abaixo. – Agora quer voltar. Diz que tem de buscar a mãe e que é tudo culpa dele.
- Ninguém sabe o que acordou a Torre! – falou Tami. – Mesmo que ele diga que foram três garotos, como alguém poderia saber? E se ele tem uma mãe lá, já deve estar morta. Não tem como ter sobrevivido todo esse tempo. Me dá arrepios só de pensar no que aquilo se tornou.
- Ele parece nem sentir – disse Yann, curvando a cabeça em direção à uma casa logo a frente. Da porta da frente saía um velho, de mochila nas costas e portando um cajado. Ele começou a descer a longa escadaria, mas parou por um momento. Virou-se para trás e encarou Yann.
- Não faça nada – sussurrou Tami. – Já tentamos tudo o que pudemos. Se ele quer se sacrificar, deixe-o ir.
- Ele não vai conseguir sair de lá. Não agora.

O velho tornou a se virar e continuou a descer os degraus. Tami e Yann o observaram sumir na escuridão lá embaixo. Ela fixou o olhar nas copas das árvores, logo acima.

- Resta esperar que as Colinas Frias não o deixem entrar.


Naquele ponto da floresta era possível sentir a presença da Torre. Ela estava a quilômetros de distância, mas emanava um mal tão grande como nunca poderia se imaginar. Faltava pouco para o velho pequenino alcançar a orla da Floresta Dart-Mor. Por anos aquelas árvores serviram de abrigo contra as trevas que assolaram as Colinas Frias. O velho já sentia calafrios só de lembrar o terror que voltaria a enfrentar. Ele enxugou o suor de sua face queimada e continuou a viagem.

Enquanto caminhava pela estrada proibida, as árvores mudavam de aparência. De um marrom vivo passavam a um cinza disforme. Não havia mais brisa, não havia mais o costumeiro canto dos pássaros. O velho tinha chegado à fronteira entre Dart-Mor e as Colinas Frias.

Há tempos ele não via um céu tão escuro. Pelo visto os raios de sol nunca mais alcançaram os descampados das colinas. Um cheiro pútrido invadiu as narinas do pequeno, lembrando-o dos terríveis acontecimentos que nunca saíram de seus sonhos. Sentiu vontade de vomitar, queria desistir daquela viagem suicida, mas não poderia viver por mais tempo com aquela culpa.

Ele sabia que quando deixasse a floresta, tudo iria mudar. Quem olhasse de longe pensaria que as Colinas Frias tinham sido acometidas por uma sombra, e nada mais. Enorme engano. Ao passar pelo último galho morto de Dart-Mor, uma escuridão engoliu o pequenino. Ele sentia tudo queimar a sua volta, num calor quase insuportável. Sem pensar duas vezes, o velho continuou andando, embrenhando pelo inferno, sem mais enxergar.

Alcy Filho