Um inusitado movimento





Numa manhã como outra qualquer, num país corrupto de primeiro mundo, todos os políticos acordaram sob a mira de revólveres. Uma força-tarefa, idealizada em certo website, abrangeu cada município da evoluída nação. Os jornais noticiavam “Líderes ameaçados”, “Pânico na política”, “País em crise”. Nas ruas esse era o assunto da vez.
- Ficou sabendo?
- Do quê?
- Os políticos foram seqüestrados.
- Ah, não me dê falsas esperanças.
- Estou falando sério, veja!
- Deus do céu, é verdade mesmo? Quanta crueldade!
O mais famoso telejornal noticiava o vídeo entregue pelos seqüestradores. Na gravação, um senador lia uma carta, enquanto fuzis miravam seu crânio.
- Hoje fomos presos e sentenciados – leu o homem de terno, suando. – Sabemos que somos mentirosos por natureza e merecemos o mais alto castigo – ele parou um momento antes de continuar. – Pedimos que a polícia não tente nos resgatar. E não vamos pedir perdão por nossos erros, para que não haja chance de redenção.
Muitos que assistiram à transmissão ficaram com pena do senador que lia sua própria sentença de morte. Outros ficaram indignados pela coragem dos líderes em pedir que a polícia não se envolvesse. E muitos ainda concordaram com o mais alto castigo aos políticos, já que eles mesmos não queriam pedir perdão pelos erros. Já o restante dos espectadores resolveu mudar de canal e assistir a novela.
O fato foi que a força tarefa não durou muito tempo. Os integrantes começaram a se questionar o que aconteceria depois. Se realmente valeria a pena seguir com o plano. Protestos surgiram na rede mundial, em prol da soltura dos vereadores, prefeitos, governadores, deputados, senadores e, principalmente, do presidente.
E foi na primeira brecha encontrada pelo exército (já que a polícia havia sido descartada pelos reféns) que os seqüestradores foram encurralados, presos e sentenciados.
Metade dos criminosos foi parar na forca. A outra metade lotou as raras prisões de segurança máxima do país de primeiro mundo.
O líder máximo da nação lamentou o ocorrido e abriu uma investigação para apurar os fatos. Deste modo, toda terça-feira os políticos saem de suas casas e se dirigem às câmaras e senados para participar da mais nova CPI em andamento. E no restante da semana descansam. Mas engana-se você se pensa que fazem isto por menosprezar o cargo que exercem. Os políticos em seu descanso refletem sobre a vida. Sobre o que fazem, se é certo ou errado. Sobre o porquê da população nunca estar contente e sempre querer mais. E é nesse momento de juízo que afloram os pensamentos de esquerda, direita e mercenarismo. É daí que novos partidos brotam, novas idéias afloram e novos desistentes se afastam do cenário político.
E dizem por aí que estes afastados criaram um movimento. Parece algo novo e inusitado. Comunidades on-line só falam nisso, bolando estratégias e recrutando adeptos. Segundo fontes, antigos simpatizantes do senado estão formando um verdadeiro exército para seqüestrar e executar todos os líderes políticos.
Tal informação chegou aos ouvidos das autoridades, mas, sinceramente, para que se preocupar? Todos sabem que seria uma força-tarefa impossível de se cumprir e, caso acontecesse, a polícia estaria de prontidão para atuar diante do fato. Ora, o país em questão é civilizado, sem dívidas nem corrupção. Formado por pessoas de bom caráter e índole ímpar. Deviam é se orgulhar dos líderes que o próprio povo retirou do palanque. Afinal de contas, não estamos falando de um país de criminosos, mas sim de uma evoluída nação de primeiro mundo.

Alcy Filho

O Coadjuvante





Quando acordou imaginou que ainda dormia. Belisco aqui e ali, os olhos abertos. Não parecia estar dormindo. A mulher apareceu na porta, visivelmente confusa.
- Que dia é hoje? – ela perguntou.
- Não sei. Parece sábado. É, tem cheiro de sábado.
A estranha sensação continuou durante o lanche da manhã. O homem terminou de comer, penteou os cabelos louros e deu um beijo na esposa.
- Tem certeza que hoje é sábado? – perguntou ela antes que ele fosse embora.
- Não, e você?
Ela não respondeu e o homem não insistiu. Seguiu para o elevador e apertou o botão, que ficou vermelho e depois verde.
- Desce? – ele perguntou ao homem ruivo parado no elevador, o qual se assustou e ficou um tempo mudo. Então falou:
- É... Acho que sim.
Desceram boa parte dos andares sem ouvir a voz do outro. O homem ruivo parecia inquieto e inspecionava cada parede do elevador, movendo os olhos de pressa.
- Nós não nos conhecemos, não é mesmo? – perguntou o homem louro de repente.
- Pelo visto, não – respondeu o ruivo.
- Já não teve uma sensação de ter acordado, mas continuar sonhando?
- Como num sonho dentro de um sonho?
- Exatamente.
- Eu mentiria se dissesse que não.
De súbito os dois olharam para o chão do elevador que começava a inundar. Água entrava pelas portas que começavam a se abrir. O homem ruivo, desesperado, forçou as portas para fugir dali, já o louro, atônito, enfrentou a água e foi seguindo o desconhecido.
Os móveis da recepção boiavam e passavam pela entrada principal. Os homens saíram do prédio e nadaram até a avenida principal. A cidade tinha sido invadida pelas águas e pessoas por todos os lados nadavam procurando abrigo. Enquanto a maioria tentava entrar nos prédios, fugindo da enchente, o louro e o ruivo continuavam a adentrar a avenida, até que chegaram a um cruzamento.
Eles pararam, batendo com força os pés para não afundar, e olharam um edifício enorme. Nada mudava. As pessoas passavam desesperadas e subiam em carros e ônibus.
Foi então que algo mudou. O nível da água começou a subir. Todos pararam de nadar, vislumbraram uma onda gigante abater o edifício logo à frente. O homem ruivo começou a ofegar. Sentiu os olhos pesados, coração ritmar e o desespero a tomar conta.
- Agora sei que é um sonho! - gritou.
A onda se aproximou. O louro ficou em estado de choque e começou a afundar.
- Tenho certeza que é um sonho! – continuou o ruivo. – Tenho que acordar...
Finalmente a onda engoliu a todos. O louro observou de longe o ruivo sumir nas águas. Nenhum sentia a falta do ar. Apenas percebiam a escuridão que se formava ao redor.


Quando percebeu já estava na cama, acordado. Levantou e se olhou no espelho. Continuava louro. A mulher apareceu no quarto, perdida na própria casa.
- Acho que hoje é sábado – ela disse, olhando pra janela.
- É mesmo – concordou o marido. – Tem cheiro de sábado.
O homem louro terminou de lanchar, despediu-se da esposa e se dirigiu à porta, quando lhe surgiu a dúvida.
- Tem certeza que hoje é sábado?
- Bem, agora que você perguntou... – respondeu a mulher. – Parece que o sábado já passou.
O botão do elevador ficou verde e as portas se abriram. O homem louro viu uma mulher ruiva encostada no espelho, observando o teto.
- Desce? – perguntou ele.
Ela se assustou e encarou o homem.
- É... Acho que sim.
Ambos desceram calados, para fora do prédio, rumo à cidade inundada.

Alcy Filho

Leia também: "Os Protagonistas"

Imagem: Pens Eye