Os Protagonistas


Leia antes: "O Coadjuvante"

O elevador era pequeno, mais de quatro pessoas causaria certo desconforto. O rapaz se virou e encarou o espelho. Imagem turva, embaçada. Mas os cabelos continuavam ruivos. A porta se abriu num ruído que lembrava a freada de um caminhão. Assustado, fitou o homem loiro que chamara o elevador.
- Desce? - perguntou o loiro.
- É... acho que sim.
Para o ruivo, tudo era real. Ainda não desconfiara da realidade.


Sarah batia repetidamente a caneta na mesa. O quarto escuro era iluminado apenas pelo rádio relógio, que marcava em vermelho-vivo “01:00 pm”. Tomás dormia tranquilamente na cama ao lado, amarrado por cintas de couro, deitado sobre o lençol branco com peixes azuis.
O barulho da caneta contra a mesa substituía o tique-taque inexistente do relógio na parede, cujo ponteiro dos segundos deslizava sem produzir som. Algo precisava entretê-la enquanto Tomás avançava nos estágios do sono.
Correu os olhos pelo quarto, observando a mobília e os aparelhos médicos, todos assumindo a tonalidade de vermelho emitida pelo rádio relógio. Subiu o olhar para o teto e viu um pequeno ponto azul piscar incessantemente. Levantou-se e analisou a máscara de dormir de Tomás. Bem acima do nariz um LED azul-turqueza piscava, sinalizando que Tomás havia entrado no estágio de sono REM. Sarah esboçou um sorriso ansioso. Agora seria questão de minutos.
Foi até o canto do quarto e ligou a luz escura. O lugar assumiu uma cor roxo-azulada, dando certa visibilidade. Pegou um caderno de atas em cima da cômoda ao lado de Tomás. Sentou-se novamente, caderno aberto, caneta posicionada, ansiedade aumentando.
Tomás começou a mover as mãos, girando ambas lentamente no sentido horário. Os pés, presos ao colchão, se agitaram contra as cintas. Sarah teve de conter o impulso de desamarrá-lo. Algo não estava certo. Era para ser um sonho tranquilo, porém ele começou a se debater como se levasse um tremendo choque.
Sarah olhou aflita para a porta aberta, ninguém no corredor. O corpo de Tomás sacudia de tal maneira a fazer a cama dar pequenos pulos. Se continuasse assim, logo alguém seria alertado pelo barulho. Porém, subitamente, ele parou. Cessou por completo os movimentos, deixando a cabeça recair sobre o travesseiro, encarando Sarah através da máscara de dormir, que agora emitia uma constante luz amarela.
- Tomás? – sussurrou Sarah. – Você está acor...
Tomás lançou com força a cabeça para frente, aspirando brutalmente o ar pela boca, como quem tivesse passado um longo jejum de oxigênio. Tentou mexer os pés e pulsos sem muito sucesso. Estava ofegante.
- Calma, Tomás – disse Sarah, tentando aparentar serenidade e se preparando para escrever no caderno. Você precisa se acalmar ou vai se esquecer...
- Não foi do jeito que ele disse!  – gritou Tomás, ainda respirando com força.
- Fale baixo! – Sarah levantou num pulo, fechando a porta. – Quer que alguém nos escute?
- Tinha água... – Tomás se esforçava para falar. – Muita água... A cidade toda estava inundada! Eu demorei pra cair em mim... Não testei direito!
- É normal. Fazia tempo que você não induzia – Sarah começou a desamarrá-lo. – Talvez a falta de prática tenha feito você sonhar diferente.
- Não... – com as mãos livres, ele desamarrou as pernas e se sentou na cama. – Era pra ser o mesmo sonho. Começou igual. O elevador, o cara loiro... Mas quando chegamos na recepção do prédio, estava tudo inundado!
- Tomás, nós três passamos muito tempo separados. Acho que só o fato de sermos irmãos não seja o suficiente.
- Você me escutou? O início do sonho era totalmente igual! Não tinha como dar errado.
- Então por que deu errado? – ela guardou o caderno e voltou a se sentar.
- Eu não acho que tenha dado errado – sussurrou Tomás, olhando diretamente para a porta, agora fechada. Não havia garantias que o corredor continuava deserto. – Acho que ele mentiu pra gente.
- Você ficou louco, é? Pelo amor de Deus, Tomás! Ele estava morrendo, pra que iria mentir?
- Não sei! – ambos ficaram em silêncio. Nada saíra como o planejado. – Foi o mesmo sonho, juro! Só que acabei descobrindo tarde demais que não era real, e isso fez com que eu me afogasse...
Sarah coçou a cabeça e observou o irmão sobre a cama. E se ele estivesse certo? No fundo sabia que isso era possível. Levantou-se e pegou de novo o caderno.
- Aqui, tome – entregou o caderno à Tomás e começou a retirar seus sapatos. - Vamos descobrir se foi ou não mentira.
- Não, não! - exclamou Tomás, colocando o caderno de lado. - Eu induzo de novo! Não vou deixar você se afogar...
- Tomás, eu não vou me afogar. Saia logo da cama e pegue esse caderno. Você sabe que é quase impossível você induzir duas vezes seguidas o mesmo sonho do Jonas.
Inconformado, ele se arrastou para fora da cama. Pouco tempo depois Sarah estava já atada à cama, com a máscara de dormir envolvendo o rosto. Tomás se sentou e pegou a mão da irmã, apertando com força.
- Não precisa se preocupar comigo... – disse ela, tentando se relaxar. – Eu já disse que não vou me afogar. Isso porque, diferente de você, eu nunca deixei a indução. Pode ficar tranquilo. No início do sonho eu já estarei lúcida.
E o quarto mergulhou em um profundo silêncio. Tomás se preparou para uma longa espera, contudo levou um susto ao olhar para o teto. Uma luz azul piscava repetidamente.
Sarah havia entrado.


Elevador pequeno. Com mais de quatro pessoas já ficaria desconfortável. A moça não se virou para encarar sua imagem embaçada no espelho. Passou a mão pelos cabeços. Por algum motivo sabia que continuavam ruivos.
A porta se abriu repentinamente. Ela lançou um olhar assustado ao homem loiro que esperava pelo elevador. Ele parecia perdido, deslocado.
- Desce?
- É... acho que sim. - as palavras saíram mecanicamente.
O homem entrou e a porta se fechou atrás dele. Agora era só esperar. O livro estava lá embaixo, em algum lugar.
E o elevador descia levando Sarah. Rumo à cidade inundada.

Alcy Filho

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