
Quando acordou imaginou que ainda dormia. Belisco aqui e ali, os olhos abertos. Não parecia estar dormindo. A mulher apareceu na porta, visivelmente confusa.
- Que dia é hoje? – ela perguntou.
- Não sei. Parece sábado. É, tem cheiro de sábado.
A estranha sensação continuou durante o lanche da manhã. O homem terminou de comer, penteou os cabelos louros e deu um beijo na esposa.
- Tem certeza que hoje é sábado? – perguntou ela antes que ele fosse embora.
- Não, e você?
Ela não respondeu e o homem não insistiu. Seguiu para o elevador e apertou o botão, que ficou vermelho e depois verde.
- Desce? – ele perguntou ao homem ruivo parado no elevador, o qual se assustou e ficou um tempo mudo. Então falou:
- É... Acho que sim.
Desceram boa parte dos andares sem ouvir a voz do outro. O homem ruivo parecia inquieto e inspecionava cada parede do elevador, movendo os olhos de pressa.
- Nós não nos conhecemos, não é mesmo? – perguntou o homem louro de repente.
- Pelo visto, não – respondeu o ruivo.
- Já não teve uma sensação de ter acordado, mas continuar sonhando?
- Como num sonho dentro de um sonho?
- Exatamente.
- Eu mentiria se dissesse que não.
De súbito os dois olharam para o chão do elevador que começava a inundar. Água entrava pelas portas que começavam a se abrir. O homem ruivo, desesperado, forçou as portas para fugir dali, já o louro, atônito, enfrentou a água e foi seguindo o desconhecido.
Os móveis da recepção boiavam e passavam pela entrada principal. Os homens saíram do prédio e nadaram até a avenida principal. A cidade tinha sido invadida pelas águas e pessoas por todos os lados nadavam procurando abrigo. Enquanto a maioria tentava entrar nos prédios, fugindo da enchente, o louro e o ruivo continuavam a adentrar a avenida, até que chegaram a um cruzamento.
Eles pararam, batendo com força os pés para não afundar, e olharam um edifício enorme. Nada mudava. As pessoas passavam desesperadas e subiam em carros e ônibus.
Foi então que algo mudou. O nível da água começou a subir. Todos pararam de nadar, vislumbraram uma onda gigante abater o edifício logo à frente. O homem ruivo começou a ofegar. Sentiu os olhos pesados, coração ritmar e o desespero a tomar conta.
- Agora sei que é um sonho! - gritou.
A onda se aproximou. O louro ficou em estado de choque e começou a afundar.
- Tenho certeza que é um sonho! – continuou o ruivo. – Tenho que acordar...
Finalmente a onda engoliu a todos. O louro observou de longe o ruivo sumir nas águas. Nenhum sentia a falta do ar. Apenas percebiam a escuridão que se formava ao redor.
Quando percebeu já estava na cama, acordado. Levantou e se olhou no espelho. Continuava louro. A mulher apareceu no quarto, perdida na própria casa.
- Acho que hoje é sábado – ela disse, olhando pra janela.
- É mesmo – concordou o marido. – Tem cheiro de sábado.
O homem louro terminou de lanchar, despediu-se da esposa e se dirigiu à porta, quando lhe surgiu a dúvida.
- Tem certeza que hoje é sábado?
- Bem, agora que você perguntou... – respondeu a mulher. – Parece que o sábado já passou.
O botão do elevador ficou verde e as portas se abriram. O homem louro viu uma mulher ruiva encostada no espelho, observando o teto.
- Desce? – perguntou ele.
Ela se assustou e encarou o homem.
- É... Acho que sim.
Ambos desceram calados, para fora do prédio, rumo à cidade inundada.
Alcy Filho
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Imagem: Pens Eye
Um comentário:
Esse texto é interessante porque no início dá a sensação de que é uma coisa e depois de que é outra e o final transforma tudo em metáfora, ou não.
Muito bom.
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