Tesouro na calçada


Deixou o tesouro na calçada.
Hesitante, não sabia ao certo se queria abandoná-lo.
Tantos sentimentos sem coerência insistiam em lhe confundir.
E o tesouro lá, na calçada.
Era pequeno seu tesouro.
Contudo, nele via luz sem igual.
As lágrimas desciam lhe ofuscando a visão.
Quem estaria mais indefeso, ele ou o tesouro?
Talvez pensasse em como seria de agora em diante.
Alguém merecedor certamente o encontrará, pensou ele.
Caminhou, e sem olhar para trás, deixou o tesouro lá, na calçada.
Um dia, quem sabe, ele descubra que o tesouro e ele eram iguais.
Sim, existiam pedrinhas de sujeira no tesouro também.
Sim, seu coração poderia refletir igual luz.
Terá então achado a fonte, o mapa do tesouro.
Fará o caminho de volta?

Caio e Bia


Você conhece o Caio? Claro que não. Caio nao é igual a qualquer outro garoto. Na verdade, alguns dizem que ele é feito de asfalto, e se camufla quando tem vontade.
O Caio tem o poder de fazer malabarismos na frente do seu carro, saltar de um lado para o outro, recitar um poema de própria autoria, isso tudo sem que você ao menos perceba sua presença. Nem ilusionista profissional consegue isso.
Mas Caio tem algo a mais. Ele tem sua irmã, a quem ensina todos os seus truques. O nome dela é Bia.
Tá certo que a Bia ainda é pequena, bonitinha, então ainda não tem muita destreza para ficar invisível no semáforo. Ainda ganha uns bons trocados no horário de pico, e até recebe alguns convites pra entrar no carro. Mas não aceita nenhum. Sabe que no final do dia precisa levar o lucro pro Caio. Ele que agora não fica mais em casa à noite
Caio descobriu que depois de uma certa hora, o mesmo cara de terno que fecha o vidro do carro na sua cara, vai a pé pro semáforo. E o mais incrível, ele vê o Caio! Chegam até a conversar, enquanto o burguês acende o cachimbo e frita os miolos com o bagulho.
Uma hora dessas Bia fica em casa vendo a garrafa rolar pela barriga do pai, desmaiado no sofá. Mas ela nem espera muito tempo observando. Sabe que quando ele acordar, a cena não vai ser muito bonita. Não demora muito ela vai pra janela do quarto. Quando a lua está cheia e iluminando o morro, Bia consegue ver seu irmão lá na encosta com seus novos amigos.
O sonho dela é crescer pra poder acompanhar Caio.
Mas é só sonho.
As meninas não acompanham os meninos pra vender cachimbo à noite.
Quem sabe um dia ela não toma coragem e entra no carro? Os caras na rua parecem ter tanta vontade de levá-la pra um passeio. Um dia ela ainda vai entrar, isso é certeza. Mas por enquanto não, porque não tem coragem de passear e deixar o Caio trabalhando.

E a lua continuava bem cheia, nem parecia que era noite. Bia bocejou e percebeu já ser tarde. Tinha de ir dormir, porque amanhã era um novo dia. Caio ia ensinar a jogar malabares. Ela estava ficando crescidinha e já poderia aprender. Ele repassaria todos os truques.
Só que o principal deles nem precisaria ensinar. Com o passar dos dias ela acabará se fundindo ao semáforo e ao asfalto. Ninguém nem perceberá sua presença. Terá de frequentar as ruas à noite, mas não poderá vender cachimbo, porque ninguém compra cachimbo de menina.
Vai ter de vender outra coisa. Ela ainda não sabe o que. Talvez nem venha a saber.
O importante agora é dormir.
Sonhar com os malabares.
Sonhar com os carros.
Ou talvez sonhar com um futuro.
Apenas sonhar.

Alcy Filho

O mundo acorda cedo



Hoje senti o cheiro da manhã
Fui mais rápido que o sol
Cheguei na hora devida
E percebi não estar só.

O velho senhor pairava na esquina
Esperando pelo pão
Que sai cedo, acaba cedo.

Só então é que voltei otimista
O silêncio gritando ao redor
E as ruas me inclinando para frente.

De uma coisa eu sempre soube:
O mundo acorda cedo.
Decidi acordar também.

Alcy Filho

Imagem: John of Dublin

Os Contos de Biodak - Mundo Escuro





            Yanna abriu os olhos. Estava tudo embaçado e claro demais. Ouvia risos ao longe, crianças brincando, seu pai martelando alguma coisa lá fora. Tentou se sentar na cama, afastando o cobertor para o lado. Sentia a garganta queimando, e doía ao engolir. A visão continuava turva, mas já conseguia distinguir os móveis espalhados pelo quarto. Uma forte luz entrava pela janela, ofuscando ainda mais tudo ao redor.
            As risadas continuavam. Ela se arrastou para o lado da cama e pousou o pé no chão de madeira. Cambaleou até a porta e abriu, sentindo náuseas ao tentar enxergar com mais nitidez. Devia estar muito doente. Andou por um corredor em forma de arco, apoiando-se no tronco da gigantesca sequoia, na qual a casa havia sido construída. Na medida em que avançava, as risadas ficavam mais fortes e visão ia melhorando. Quando percebeu, já estava na cozinha da casa. Vazia. Panelas sujas na pia, restos de comida espalhados na mesa ao centro, água inundando todo o chão. Sentiu os pés queimarem ao tocar a água. Deu um salto para trás.
- Yanna, pegue logo seu prato! - uma voz inconfundível veio do fundo da cozinha. Era sua mãe.
- Mãe? Você está aí?
- Claro que estou! Vamos, pegue o prato antes que esfrie.
            A visão voltou a embaçar. Yanna sentiu fortes dores nas costas. Era como se estacas estivessem perfurando sua pele, só que de dentro pra fora. Suas pernas cederam, e foi ao chão, gemendo de dor.
- Eu... - tentou dizer. - Mãe... A dor...
- Sei, Yanna. A culpa é sua - disse a voz, soltando uma risada quase inaudível. - Eu falei que iria esfriar. Agora seu irmão terá de comer.
            Yanna olhou para o lado e viu um garoto se contorcendo no chão, a cabeça batendo repetidamente contra o piso. No mesmo instante o corpo do garoto se incendiou. As risadas se transformaram em gritos e as chamas se alastraram pela cozinha.
- A culpa é sua, toda sua! - a voz da mãe surgia de todos os lados. - Saia daqui, monstro!
            Quando o fogo alcançou as mãos de Yanna, tudo se apagou.


            Lentamente Yanna novamente abriu os olhos. Nada de visão turva, enxergava bem a floresta ao seu redor. Estava deitada sobre uma enorme rocha, coberta de grossas raízes. Ao lado corria um rio, indiferente a tudo que se passava. Pensou ter tido um horrível pesadelo, do qual não se lembrava mais. No entanto, o barulho das águas, o canto dos pássaros, as folhas caindo ao seu redor, era tudo tão familiar. Sentia-se em casa.
            Quis se levantar e ver as correntezas do rio. E foi assim que percebeu. Tentou mover suas mãos, mas no lugar delas encontrou patas com afiadas garras. Olhou para o próprio corpo e sentiu uma dor dilacerar sua garganta. A pele estava coberta de escamas avermelhadas. Seu nariz parecia pegar fogo, e a cada momento sua respiração ofegava mais e mais. Arrastou-se, arranhando as raízes com suas escamas, até chegar à beirada da rocha.
            O rio permanecia quase que inerte logo abaixo. E o reflexo na água foi o que mudou tudo. Uma criatura gigantesca encarava Yanna, com suas narinas bufando fumaça. Os olhos eram enormes e amarelados, e a boca entreaberta revelava longas e perigosas presas. Três chifres curvavam-se para trás, fixados no topo da cabeça. A floresta pareceu se calar enquanto Yanna descobria no que havia se transformado.
            Aos poucos as árvores começaram a se balançar, derrubando boa parte de suas folhas no chão. Logo todo o Oásis de Amdu dançava em reverência à Yanna, a nova Senhora dos Dragões de Amdu, sucessora de Ghiardo e última de sua espécie.
            Seus olhos, outrora cegos, agora enxergavam outro mundo, escuro, muito diferente do visto por aquela pequena menina de cabelos loiros. Ela ergueu a cabeça e bateu suas asas, levantando consigo as folhas a sua volta. Alçou voo para acima das copas das árvores, e continuou rasgando os céus, subindo até a floresta se tornar um pequeno ponto no meio do deserto. Observou toda a região ao redor, sem parar de bater as asas. Então algo explodiu em sua garganta, forçando-a soltar uma longa labareda de fogo, incendiando o céu de Amdu.
            O Oásis havia conseguido. Seu último desejo fora realizado. Yanna traria de volta o terror dos antigos dragões. O reinado dos Grandes Alados estava para recomeçar.

Alcy Filho


Imagem: venicequeenf

Os Protagonistas


Leia antes: "O Coadjuvante"

O elevador era pequeno, mais de quatro pessoas causaria certo desconforto. O rapaz se virou e encarou o espelho. Imagem turva, embaçada. Mas os cabelos continuavam ruivos. A porta se abriu num ruído que lembrava a freada de um caminhão. Assustado, fitou o homem loiro que chamara o elevador.
- Desce? - perguntou o loiro.
- É... acho que sim.
Para o ruivo, tudo era real. Ainda não desconfiara da realidade.


Sarah batia repetidamente a caneta na mesa. O quarto escuro era iluminado apenas pelo rádio relógio, que marcava em vermelho-vivo “01:00 pm”. Tomás dormia tranquilamente na cama ao lado, amarrado por cintas de couro, deitado sobre o lençol branco com peixes azuis.
O barulho da caneta contra a mesa substituía o tique-taque inexistente do relógio na parede, cujo ponteiro dos segundos deslizava sem produzir som. Algo precisava entretê-la enquanto Tomás avançava nos estágios do sono.
Correu os olhos pelo quarto, observando a mobília e os aparelhos médicos, todos assumindo a tonalidade de vermelho emitida pelo rádio relógio. Subiu o olhar para o teto e viu um pequeno ponto azul piscar incessantemente. Levantou-se e analisou a máscara de dormir de Tomás. Bem acima do nariz um LED azul-turqueza piscava, sinalizando que Tomás havia entrado no estágio de sono REM. Sarah esboçou um sorriso ansioso. Agora seria questão de minutos.
Foi até o canto do quarto e ligou a luz escura. O lugar assumiu uma cor roxo-azulada, dando certa visibilidade. Pegou um caderno de atas em cima da cômoda ao lado de Tomás. Sentou-se novamente, caderno aberto, caneta posicionada, ansiedade aumentando.
Tomás começou a mover as mãos, girando ambas lentamente no sentido horário. Os pés, presos ao colchão, se agitaram contra as cintas. Sarah teve de conter o impulso de desamarrá-lo. Algo não estava certo. Era para ser um sonho tranquilo, porém ele começou a se debater como se levasse um tremendo choque.
Sarah olhou aflita para a porta aberta, ninguém no corredor. O corpo de Tomás sacudia de tal maneira a fazer a cama dar pequenos pulos. Se continuasse assim, logo alguém seria alertado pelo barulho. Porém, subitamente, ele parou. Cessou por completo os movimentos, deixando a cabeça recair sobre o travesseiro, encarando Sarah através da máscara de dormir, que agora emitia uma constante luz amarela.
- Tomás? – sussurrou Sarah. – Você está acor...
Tomás lançou com força a cabeça para frente, aspirando brutalmente o ar pela boca, como quem tivesse passado um longo jejum de oxigênio. Tentou mexer os pés e pulsos sem muito sucesso. Estava ofegante.
- Calma, Tomás – disse Sarah, tentando aparentar serenidade e se preparando para escrever no caderno. Você precisa se acalmar ou vai se esquecer...
- Não foi do jeito que ele disse!  – gritou Tomás, ainda respirando com força.
- Fale baixo! – Sarah levantou num pulo, fechando a porta. – Quer que alguém nos escute?
- Tinha água... – Tomás se esforçava para falar. – Muita água... A cidade toda estava inundada! Eu demorei pra cair em mim... Não testei direito!
- É normal. Fazia tempo que você não induzia – Sarah começou a desamarrá-lo. – Talvez a falta de prática tenha feito você sonhar diferente.
- Não... – com as mãos livres, ele desamarrou as pernas e se sentou na cama. – Era pra ser o mesmo sonho. Começou igual. O elevador, o cara loiro... Mas quando chegamos na recepção do prédio, estava tudo inundado!
- Tomás, nós três passamos muito tempo separados. Acho que só o fato de sermos irmãos não seja o suficiente.
- Você me escutou? O início do sonho era totalmente igual! Não tinha como dar errado.
- Então por que deu errado? – ela guardou o caderno e voltou a se sentar.
- Eu não acho que tenha dado errado – sussurrou Tomás, olhando diretamente para a porta, agora fechada. Não havia garantias que o corredor continuava deserto. – Acho que ele mentiu pra gente.
- Você ficou louco, é? Pelo amor de Deus, Tomás! Ele estava morrendo, pra que iria mentir?
- Não sei! – ambos ficaram em silêncio. Nada saíra como o planejado. – Foi o mesmo sonho, juro! Só que acabei descobrindo tarde demais que não era real, e isso fez com que eu me afogasse...
Sarah coçou a cabeça e observou o irmão sobre a cama. E se ele estivesse certo? No fundo sabia que isso era possível. Levantou-se e pegou de novo o caderno.
- Aqui, tome – entregou o caderno à Tomás e começou a retirar seus sapatos. - Vamos descobrir se foi ou não mentira.
- Não, não! - exclamou Tomás, colocando o caderno de lado. - Eu induzo de novo! Não vou deixar você se afogar...
- Tomás, eu não vou me afogar. Saia logo da cama e pegue esse caderno. Você sabe que é quase impossível você induzir duas vezes seguidas o mesmo sonho do Jonas.
Inconformado, ele se arrastou para fora da cama. Pouco tempo depois Sarah estava já atada à cama, com a máscara de dormir envolvendo o rosto. Tomás se sentou e pegou a mão da irmã, apertando com força.
- Não precisa se preocupar comigo... – disse ela, tentando se relaxar. – Eu já disse que não vou me afogar. Isso porque, diferente de você, eu nunca deixei a indução. Pode ficar tranquilo. No início do sonho eu já estarei lúcida.
E o quarto mergulhou em um profundo silêncio. Tomás se preparou para uma longa espera, contudo levou um susto ao olhar para o teto. Uma luz azul piscava repetidamente.
Sarah havia entrado.


Elevador pequeno. Com mais de quatro pessoas já ficaria desconfortável. A moça não se virou para encarar sua imagem embaçada no espelho. Passou a mão pelos cabeços. Por algum motivo sabia que continuavam ruivos.
A porta se abriu repentinamente. Ela lançou um olhar assustado ao homem loiro que esperava pelo elevador. Ele parecia perdido, deslocado.
- Desce?
- É... acho que sim. - as palavras saíram mecanicamente.
O homem entrou e a porta se fechou atrás dele. Agora era só esperar. O livro estava lá embaixo, em algum lugar.
E o elevador descia levando Sarah. Rumo à cidade inundada.

Alcy Filho

Desfocado



Quando olho para o mundo, não vejo as mesmas coisas que você vê.
Até a quantidade não é sempre a mesma.
Vejo um mundo diferente, turvo, duplo.
Às vezes embaçado, às vezes desfocado.
Não enxergo como você enxerga.
Seria porque sou sonhador?
Ou mesmo porque penso ser poeta?

Não.

É porque sou estrábico e míope :)

Alcy Filho


Imagem: frazerweb

Céu negro - Parte 1



Olhei no relógio. 17:30 e ainda ouvia barulho dos alunos nos corredores. Apertei meu celular na palma da mão, como se fosse adiantar alguma coisa. “Pede pro papai vir me buscar”, foi o torpedo que enviei para meu irmão. Ele estava doente, então sem chances de eu conseguir proteção na saída. Corri os olhos através da janela e lá estavam eles, escorados na grade perto da portaria. Diogo também estava no sétimo ano, mas tinha estatura de aluno do Ensino Médio. Seus dois amigos não eram maiores que eu, mas em força com certeza o eram.
Eu, sozinho na sala de aula, cruzei os braços para me proteger do frio. Fechei os olhos e tentei me imaginar em casa, deitado na cama debaixo do cobertor, protegido dos moleques da escola. Não funcionou. Abri os olhos e ainda estava na sala, de cara para o quadro negro. Só que agora uma figura baixinha e carrancuda estava ao meu lado, encarando-me por trás dos óculos fundo de garrafa. Era Sônia, a coordenadora, o terror dos alunos do Ensino Fundamental.
- O que cê tá fazendo aqui ainda? Todo mundo sabe: professor sai, aluno sai. Regra simples. Pega seu material e vai esperar lá na portaria. Bora, menino!
Catei meus lápis em cima da mesa e joguei dentro da mochila. Pendurei uma alça no ombro e saí da sala. Não falei sobre o Diogo e a surra que eu provavelmente levaria. Isso só agravaria as coisas. Quem sabe, por um milagre, meu pai já não estaria no corredor, andando de um lado para outro, esperando para ir embora. Não estava.
Minha sala ficava no fim do corredor do bloco de aulas. Comecei a andar sem pressa, passando lentamente pelas portas abertas, observando as moças da limpeza apagarem as artes feitas pelos estudantes nas carteiras. Eu devia ser o único aluno que ainda estava no Instituto. Era sexta-feira, não haveria educação física e até a academia já tinha fechado. Só restavam alguns adultos, que pouco se importariam comigo, sem contar com Diogo e seus amigos.
Fui subindo as escadas que me levariam à portaria. Fazia um frio sobrenatural, e a grande quantidade de árvores espalhadas pela escola colaboravam para o clima. As escadas ficavam ao ar livre, recebendo apenas uma proteção superior contra a chuva. Encolhi os ombros e continuei subindo, enfrentando a vento que uivava feito lobo.
Quando cheguei no nível da portaria, encarei o portão dos alunos aberto e Diogo de costas, rindo, provavelmente contando uma piada racista. Instintivamente dei meia volta e comecei a andar. Não queria apanhar. Minhas costelas latejavam só de pensar no punho do Diogo se enterrando no meu estômago, quebrando qualquer osso pelo caminho. Apertei o passo e resolvi olhar para trás. Eles também olharam. Diogo fechou a cara e deu um tapa nas costas de cada um dos amigos. Vieram atrás de mim.
Corri em direção à biblioteca, na esperança de me esconder até o Instituto fechar. Quem sabe eu não passava a noite por ali? Gelei quando avistei a porta fechada e as luzes apagadas. Rumei pelo pátio, depois subi as escadas para o bloco 400, onde ficavam os laboratórios. Ouvi risadas atrás de mim. Tinha de me esconder. Tropecei no último degrau e deixei a mochila cair.
Passei por dentro do bloco e abri o portão que dava acesso ao gramado nos fundos do Instituto. Diogo gritou atrás de mim.
- Ô, bichinha! Cê deixou sua bolsa cair.
Desengonçado, escalei um pequeno barranco e me apoiei num velho jatobá. Parecia que todo oxigênio do mundo havia acabado. Coloquei a mão no peito, ofegando desesperadamente. Diogo passou pelo portão, sem muita pressa, com um sorriso malicioso no rosto. Segurava minha mochila em uma das mãos, balançando de um lado pro outro.
- Escutou não? - falou. - Sua bolsa caiu no chão.
Jogou com força a mochila em mim. Protegi com um dos braços e agarrei antes que atingisse meu rosto. Os amigos dele ficaram encostados no portão, fazendo o papel de vigias. Diogo foi se aproximando, até ficar a um metro de distância.
- E aí, bichinha? Tava macho hoje, falando alto e tudo mais... Aconteceu alguma coisa?
Não consegui responder. O medo, e talvez o frio, me congelaram. Só o que consegui foi erguer o corpo e tentar segurar o choro que estava por vir.
- Num vai chorar, né? - disse Diogo, agora se aproximando mais ainda.
Ele me lembrava muito o namorado da minha mãe. Pele branca, cabelo liso e castanho-escuro, penteado de qualquer jeito. A camiseta era bem apertada para mostrar os músculos que fariam um estrago no meu rosto.
- Agora cê vai aprender a calar essa boca. E também vai aprender que viadinho não fica se mostrando pra ninguém.
Diogo levantou o punho no ar. Fechei os olhos e esperei o soco. O que senti foi algo segurando meu pescoço. Será que ele iria me sufocar? Agarraram meus braços e pernas. Abri os olhos, a visão meio turva, e pude enxergar o vulto dos meninos à minha frente, andando de costas, aparentemente apavorados com alguma coisa.
Tentei ver o que me segurava, mas quando dei por mim, estava sendo puxado para baixo. Senti terra entrando pela bermuda, espinhos arranhando minha perna. Novamente fechei os olhos, e fui me deixando ser tragado. Não conseguia respirar. A pressão era imensa, e pensei que seria esmagado a qualquer momento. Foi quando o solo abaixo de mim cedeu. Com um baque surdo, caí em uma superfície lisa e gelada.
Fiquei acordado por alguns segundos antes de apagar. Acima de mim, as estrelas brilhavam fracas, pairando em um céu negro.
Ouvi chamarem meu nome. Tolos. Nunca me achariam ali.
Continua...

Alcy Filho



Orquestra de pés





Os olhos tentam abrir
Inchados, doloridos.
Pés chutam
Esmagam
Pisam.
Uma sinfonia irregular
Que quebra ossos
Quebra óculos.
Sinto sangue nas mãos
Nos pés
Na boca.
Ouço gargalhadas, gritaria
Toca o sino da escola
E finalmente cessa.
A orquestra de pés se afasta
Risos, palmas
Todos de pé
O espetáculo acabou
Próxima sessão:
Amanhã e depois, e depois.
Alguns apelidam:
Billy, Bolly
Bully, Bullying.

Eu chamo pelo nome:
Crueldade.

Alcy Filho

Jogo de palavras




Penso em fazer poesia
Apenas penso e desisto
Pois clichês e pieguices
E sentimentos sem sentido
Enchem meus versos
E destroçam minhas idéias.

Penso em fazer poesia
Apenas penso
Pois o que crio é um jogo de palavras
Tosco e redundante
Que de poesia, só tem as rimas.

Alcy Filho


Imagem: Kuriru


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Depois deste poema parei de tentar me forçar a escrever. Deixemos a inspiração fluir normalmente. Quero escrever mais do que um simples jogo de palavras ;)  #revoltajapassou