O grande dia





Começou a chover forte lá fora. Estava frio, muito frio. Ana limpou a janela embaçada e observou o homem na calçada. Ele parecia calmo e retirava suas luvas de couro pacientemente. Jogou-as em uma lata de lixo e abriu o guarda-chuva.
Ana bocejou e saiu de perto da janela. Ainda sentia sono. O barulho da chuva ajudava muito. Mas não conseguia mais dormir. Tivera um sonho ruim com gritos e tiros. Acordou assustada e foi para a janela se acalmar. Amanhã era o grande dia, não podia sofrer emoções fortes. Tinha de se preparar.
Ela se sentou na cama e arrastou as pantufas com o pé, alinhando-as. Mergulhou os dedos na pelúcia e se levantou. Foi até a porta do quarto e se observou no espelho. Só conseguia enxergar do pescoço para cima. Ergueu os braços para o alto e agarrou a maçaneta. Girou com força e abriu a porta. Ainda estava se acostumando a dormir no seu próprio quarto. Acordar sozinha, abrir a porta sozinha, era tudo novo.
O corredor que levava para o escritório do pai estava silencioso. Nada do conhecido barulho das teclas do computador. Então ela se lembrou da corrida. Ele devia estar assistindo a corrida na televisão.
Ana foi até a escada e pôde ouvir o som de carros em alta velocidade. Desceu com cuidado os degraus em espiral. Foi passando a mão pelo corrimão. Bocejou.
- Filha? – uma voz rouca veio lá debaixo. – Ah, meu Deus!
Ela desceu o último degrau e viu o pai deitado no sofá. Ele apertava firme o lado esquerdo do peito, coberto de sangue.
- Você se machucou, papai? – ela perguntou, correndo para ele.
- É, Aninha. O papai está muito machucado... – ele gemeu e apertou forte o peito. – Dá um abraço no seu pai.
Ana pulou no sofá e deu um forte abraço no pai, fazendo-o gemer. Lágrimas caiam dos olhos dele.
- Você está sangrando muito, papai. Quer que eu sopre?
Ele acenou que sim. Ana abaixou-se e soprou o peito do pai, encostando os lábios nas mãos dele.
- Fiquei toda suja – ela resmungou, limpando a boca na manga do pijama.
O pai tentou se endireitar no sofá, suspirando cada vez mais forte.
- Minha filha, o papai não está bem.
- O que aconteceu? Você se cortou?
- Não... Eu só estou doente e não vou poder ver você se apresentar amanhã... – ele começou a chorar e olhou para a porta da frente, como se procurasse alguém.
- Mas amanhã é o grande dia! Por que a gente não vai ao hospital? Daí o médico cuida de você.
Ele apertou mais forte ainda o peito e olhou firme a filha.
- Você sabe que eu te amo, não sabe?
- Sei... – ela disse, olhando o sangue que começava a se espalhar pela camisa. – Vou pegar algodão na cozinha.
- Não, não! - ele gritou, puxando Ana para si. – Apenas escute, minha filha. – ele abraçou-a e tentou abafar o choro. – Eu te amo muito. Quero que grave isso e nunca se esqueça. Sempre que se sentir triste, é só fechar os olhos e imaginar que estamos assim, abraçados.
A menina fechou os olhos. Pensou em muitas coisas. O concerto de canto. No machucado do pai. No abraço dele. Bocejou. Os pensamentos foram se perdendo. A chuva lá fora, os gemidos do pai. A sirene que começou a tocar. E Ana dormiu.
Sonhou que estava cantando. E na primeira fila seu pai sorria, batendo palmas. Tudo estava perfeito. Nada de gritos, nem tiros, nem machucados. Exatamente do jeito que o grande dia deveria ser.

Alcy Filho


Imagem: Lilla Miranda

Rastro de pureza





Cai a chuva sobre mim
E lava as impurezas do caminho
Todo torto e sem sentido
Que não posso prosseguir.

Caem as águas sobre mim
Lavam minhas lembranças
E dizem:
"Pra que lembrar dos maus momentos,
Já que a felicidade não está na angústia,
Mas na alegria do tempo presente?"

Olho para o alto e vejo as gotas
Caindo lentamente
Varrendo o vazio inexpressivo
Deixando o rastro da pureza
Com seu neutro fluido.

Lá fora cai a chuva
Por enquanto, não me molho mais,
Deixo fluir os sentimentos
Que as antigas impurezas
Prendiam em meu coração.

E cessa a chuva.

Alcy Filho


Imagem: D.James | Darren Ryan

Mãe, posso dormir no seu quarto?






- Não, Maria. Hoje você vai dormir na sua caminha, ok?
A garota soluçou e abaixou a cabeça. A luz do abajur iluminou as lágrimas que escorriam por seu rosto.
- Maria, olhe pra mim - disse Clara. - Não tem nada no seu quarto. Já procurei debaixo da cama, dentro do armário, no banheiro…
- Mas não olhou atrás da cortina - interrompeu a menina, soluçando.
- Está bem. Se eu olhar atrás da cortina, a senhorita dorme na própria cama?
- Sim…
Clara calçou os chinelos e segurou a mão de Maria, estava gelada. As duas saíram para o longo corredor. Os grandes quadros nas paredes pareciam vigiá-las. Estavam por toda parte.
- Essa casa é mal-assombrada - falou Maria.
- Por que acha isso? - perguntou Clara, virando à direita para um novo longo corredor.
- Os quadros conversam comigo, mamãe. Quando eu ando aqui sozinha, eles perguntam meu nome.
- E você responde?
- Não… Mas isso me dá arrepios.
- Quando eu tinha a sua idade também pensava ouvir vozes. É uma coisa que a nossa cabeça cria para não nos sentirmos solitárias. Não deve sentir medo da sua imaginação.
As duas pararam em frente a uma porta no fim do corredor.
- Por que eu tenho que dormir tão longe do seu quarto? - disse Maria.
- Porque já é uma mocinha e são os únicos quartos da casa.
- Pra que serve uma casa do tamanho de um quarteirão que só tem dois quartos?
Clara abriu a porta e as duas entraram. O quarto não era nem um pouco infantil. Havia pinturas surreais por todos os cantos, o guarda-roupa era de mogno, enorme. As cortinas tinham uma aparência estranha, como se fossem de madeira. A cama rosa de Maria, com edredons ilustrados com flores, não se encaixava no resto do quarto. Tudo ali tinha um ar antigo. Maria soluçou mais uma vez.
- Por favor, mamãe. Eu não quero dormir aqui.
- Nada disso. Vamos cumprir o trato… - disse Clara, abrindo as cortinas e balançando-as. - Viu, minha filha? Não tem nada aqui.
- É porque é invisível - falou Maria.
- Já chega - Clara encaminhou a menina para a cama. - Você já viu que não tem nada aqui. Que tal descansar agora?
- Mas e a coisa, mãe? Ela não pára de falar comigo.
- O que eu disse sobre a sua imaginação? Não tenha medo dela, ela faz parte de você.
A mãe beijou a filha e saiu, fechando a porta. Maria ficou olhando a janela, esperando algo acontecer.
- Ela já foi? - perguntou uma voz aguda vinda de debaixo da cama. - Não quero que ela me veja.
Maria puxou o edredom para cima da cabeça e fechou os olhos, tremendo.
- Não quer falar comigo? Eu só queria conversar.
- Vá embora… - sussurrou a menina. - Eu quero dormir.
- Está frio lá fora… Posso ficar aqui, quietinha?
A menina abaixou o edredom e abriu os olhos lentamente. Não havia nada ali. Seu corpo tremia, não queria fazer aquilo.
- É só a minha imaginação… - disse baixinho. - Não preciso ter medo de você.
Ela pulou para o chão e olhou debaixo da cama. Estava claro, pois a janela permanecia aberta. Ela pôde ver uma boneca de porcelana de cabelos marrons e cacheados, usando um vestido que seria branco se não fosse a poeira do chão. Maria suspirou aliviada e pegou a boneca. Tirou o excesso de sujeira do brinquedo e pulou de volta para a cama.
Ficou brincando com a boneca por algum tempo. O sono foi chegando, as pálpebras foram se deixando cair. Maria dormiu tranqüila abraçada a um retrato de madeira, sujo e rasgado. Retrato de uma menina de vestido branco e cabelos cacheados, com um sorriso no rosto. Parecia feliz em estar ali ou, simplesmente, sentia o forte abraço da menina.

Alcy Filho


Imagem: Gabriela Camerotti

Decrescente






Um sorriso guarda segredos
Que nem todos querem ver.
Nesse pequeno e simples gesto
A alma se revela
Transborda em sentidos
Espalhando a todo canto
Um toque especial
Uma doçura magistral
Que se dispersa pelo ar
Construindo emoções
Cativando corações
Lamentando o simples fato
Da existência de alguém
Que na tristeza dominante
Esquece da alegria
Esquece da magia
E se torna alguém distante e infeliz
Alguém que simplesmente
Não consegue mais sorrir.

Alcy Filho


Imagem: Tampen

À noite




Desde pequeno vejo monstros
Perseguindo e gritando
Enchendo de terror a minha noite
Invadindo os meus sonhos.

Não importa o que eu faça
Eles continuam lá
Depois da esquina, atrás da porta,
Esperando eu chegar.

Não é sempre que eu os vejo
Nem sempre aparecem
Só me pegam desprevenido
Então o pior acontece.

E de manhã, quando eu acordo,
Dou um pulo de alegria
Fico satisfeito, pois é dia,
E o terror se escondeu.
Escondeu-se no escuro
No fundo da minha mente
De onde às vezes ele sai
Para perseguir-me novamente.

Alcy Filho


Imagem: Exposição do Imperial War Museum de Londres

Preito à existência




Murilo Ferraz

Às vezes penso como seria…
A vida sem problemas
Sem brigas e contendas
Sem dúvidas, só certezas,
Sem ódio, puro amor,
Sem espinhos, apenas flor,
Sem raios, plena chuva,
Sem perdas, só vitórias,
Sem violência, somente paz.
Então me vejo neste mundo
Criado por Deus, dado ao homem,
E me sinto grato pela vida
Pelo dom que o Pai me deu
De consertar o que é errado
Ensinar o que é certo
E sonhar com o perfeito.

Alcy Filho


Imagem: Murilo Ferraz

Apelo cego





Estou me afogando
Não me acho
Este mar é imenso, gélido.
Fecho-me diante das barreiras
E afundo no pensar, imaginar,
Não consigo ultrapassar
Nessas correntes sem fim
Estão atrás de mim
Posso sentir o fluido
Perseguindo meus sentidos
Calmo e agitado, nos confins do início
Correndo e fugindo do desconhecido
Batizo de estranho mar das impurezas
Que é meu amigo nessas horas
Aonde transfiro meu ódio
No tempo e no espaço
Que me cega e leva a perdição
Mas o muro é abalado
Sei que agora é o momento
Passo pela fenda
Vem ajuda da superfície
E encontro meu socorro
Do alto
E o perseguidor desiste
Não me afogo mais
Não corro mais
Estou a salvo da angustia
Longe dos becos escuros.

Diante do gesto simples e perfeito
Estranho ao olhar passivo
Do planeta de ídolos
Cansado de heróis
Pedindo por ajuda
Num coro de desespero
Que escutamos, não sentimos,
Estamos cegos, perdidos,
Afogados.


Alcy Filho.

Ainda chego Lá






Parede de pedras sólidas
Um pouco maior que você
Mas só um pouco
Ainda dá pra ver além
E Lá é belo, posso lhe afirmar.
Lá é sensacional
Sempre fico nas pontas dos pés
Para conseguir olhar.

Tomei como objetivo
Caminharei o que for preciso
Enfrentarei todas as curvas
E um dia, nas últimas rochas
Chegarei Lá
E vislumbrarei a sensação
De alcançar o meu destino.

Mas há de se esperar
Pois temos curvas e caminhos
E pedras para transpor
No duro caminho para Lá.

Alcy Filho


Imagem: rayphua

Eterno apego






Está frio e já anoitece
Volto pra casa, rumo à solidão
Preciso de conselho, algo que me alegre
Mas não encontro um se quer que tenha compaixão
Vejo esquinas e esquinas
Cruzamentos e desvios
Todos traem meu caminho
Levando-me para longe
Distanciam-me de meu objetivo
Preciso alcançar aquelas tardes
Donde respirava sem pensar
E diante das tuas palavras
Começava a imaginar
Como seria sem ti
Sem sua atenção para me ouvir
Me ouvir nos desabafos
Que fluíam no silêncio de um olhar
O que preciso é te abraçar
Me lembrar do teu sorriso
Que agora fica na lembrança
Penso e reflito
Sua face continua em minha mente
Tão nítida e clara nas entrelinhas
Que revelam a verdade do sentimento
Que ninguém escuta, cheira ou sente
Mas que olho bem no interior
E me recordo de tudo que vivemos
Grande amigo da infância
Tu fostes embora e não te vejo
Mas será querido para sempre
Não sairá do meu pensar
Pois de fato somos amigos
Que nem luto pode separar.

Alcy Filho


Imagem: Kah Zanon

Mundo Irreal






Daíma olhou para o lado e fechou os olhos novamente. Não queria acordar. Os sons da floresta queriam levá-lo de novo para seus sonhos, para seus delírios. Mas ele precisava se preparar. Era dia de mudança. Seu grupo iria deixar o terreno e desbravar a mata para encontrar um novo lar.

O sol da manhã ultrapassou as folhas de bananeira, focando seus olhos negros. As crianças brincavam ali perto imitando sons de bichos. Daíma se levantou e foi ao rio se purificar. Era preciso renovar as forças para o trabalho. O Rio Caminho, como o batizaram, emprestava suas águas para homens e mulheres se lavarem. Eram seis adultos e cinco crianças. Todos pareciam ter acordado há pouco tempo.

As mulheres se uniram para sair pela mata, colhendo o que sobrara de frutos para a viagem. Os homens se dirigiram às casas e começaram a desmontá-las. Ao passo de uma hora todos estavam prontos para seguir pela mata.

Não havia pais nem mães. As crianças brincavam com todos, sem se apegar a ninguém em especial. Mas elas não se atreviam a se dispersar dos adultos. Sabiam que as árvores escondem perigos atrás de cada folha.

Sempre um do grupo ficava responsável por ir à frente. Hoje este cargo era de Daíma. Ele ia quebrando galhos e afastando obstáculos, sempre atento à perigos, como cobras e onças. Mas o que ele mais temia encontrar era outro grupo. Em toda sua vida, ele nunca conheceu outras pessoas, apenas seu grupo. E a tradição deles era de que o mundo era suas casas. Quando deixavam um lugar, esse deixava de existir. Eles eram os únicos habitantes de seu mundo.

O caminho estava difícil. A mata fechada revelava plantas cheias de espinhos, difíceis de cortar. Daíma olhava atento para os lados, esperando sempre encontrar um animal ou outra clareira desabitada. E foi isso que ele encontrou. A clareira tinha uma fogueira de pedras ainda com sinais de fumaça e algumas folhas grandes cobrindo o chão. Daíma ficou paralisado ao ver um estranho recipiente. Parecia um cesto de material estranho e áspero. Resolveu olhar dentro. Encontrou instrumentos de corte, pós coloridos e outros tantos objetos que não conhecia. Ele enfiou a mão mais adentro e pegou um pedaço de metal brilhoso, que parecia retratar as copas das árvores. Daíma virou o objeto e contemplou sua imagem refletida nele. Assustado, deu um pulo para trás, deixando o espelho cair no chão.

Ao levantar, seus olhos se depararam com uma estranha visão. Parecia um sonho. Uma mulher com vestes desconhecidas estava parada ao lado de uma árvore, olhando para ele. Lentamente ela se aproximou do cesto e fechou-o, sem retirar o olhar de Daíma. Depois começou a recuar até o fim da clareira. Sem esperar, a mulher se virou e deixou Daíma sozinho.

O vento acordou-o de seu devaneio, trazendo de volta o barulho da mata e do grupo chegando.
Daíma não contou o que viu. Não falou sobre a mulher à ninguém. A visão ficaria para trás, como todos os lares que havia abandonado.
Era hora de construir um novo mundo.

Alcy Filho


Imagem: lucanicae

Triste






Triste é ver e não enxergar
Caminhar e não aprender
Escutar e não ouvir
Falar e não dizer
Criar e não expressar
Tocar e não sentir
Pensar e não discutir
Receber e não doar
Saber e não crer
Viver e não amar.

Alcy Filho


Imagem: zaxl4

Nada além de rosas





O jardim acolheu o sujeito cansado
Colocou-o num canteiro de rosas
Cantou belas cantigas sobre amor
Falou-lhe sobre paixão
Citou a liberdade e explicou os ideais
Deixou cair folhas de árvores velhas
E deu exemplo da desobediência
Mostrando um tronco seco, caído perto do riacho,
Disse que é preciso aprender, e só.

O sujeito se levantou, olhou o jardim e chorou.
Derramou as lágrimas do saber e do discernimento
Livrou-se de seus direitos e vontades
Olhou para o horizonte e viu seu novo destino
Atravessou o riacho e deixou o jardim, para conhecer a vida.

Pena que a vida não sabe falar
Senão teria dito que o jardim é traiçoeiro
Teria aberto os olhos do sujeito para uma nova realidade
Revelaria que a vida não é um canteiro de rosas
Que aprender sem ponderar leva à ilusão
E que a liberdade deve ser vivida e não citada.

Pena que a vida não sabe falar
O sujeito deverá diferenciar jardins de pântanos.

Nostalgia






Sinto falta
Do meu tempo de criança
Do primeiro grande amigo
De um tempo pouco distante.

Sinto falta
Da melodia da cidade
Que em sua quietude
Grandiosa se erguia.

Sinto falta
Das belas manhãs
Do café-da-mamãe
Das tardes de sossego.

Sinto falta da saudade
Sentimento que se vai
E não deixa rastro
Saudade que falta num mundo
Que necessita de memórias.

Sinto falta
Dessa nostalgia
Desse canto na escrita
Que me permite dizer:
Como eu sinto falta.

Alcy Filho


Imagem: imapix