Eterno apego






Está frio e já anoitece
Volto pra casa, rumo à solidão
Preciso de conselho, algo que me alegre
Mas não encontro um se quer que tenha compaixão
Vejo esquinas e esquinas
Cruzamentos e desvios
Todos traem meu caminho
Levando-me para longe
Distanciam-me de meu objetivo
Preciso alcançar aquelas tardes
Donde respirava sem pensar
E diante das tuas palavras
Começava a imaginar
Como seria sem ti
Sem sua atenção para me ouvir
Me ouvir nos desabafos
Que fluíam no silêncio de um olhar
O que preciso é te abraçar
Me lembrar do teu sorriso
Que agora fica na lembrança
Penso e reflito
Sua face continua em minha mente
Tão nítida e clara nas entrelinhas
Que revelam a verdade do sentimento
Que ninguém escuta, cheira ou sente
Mas que olho bem no interior
E me recordo de tudo que vivemos
Grande amigo da infância
Tu fostes embora e não te vejo
Mas será querido para sempre
Não sairá do meu pensar
Pois de fato somos amigos
Que nem luto pode separar.

Alcy Filho


Imagem: Kah Zanon

Mundo Irreal






Daíma olhou para o lado e fechou os olhos novamente. Não queria acordar. Os sons da floresta queriam levá-lo de novo para seus sonhos, para seus delírios. Mas ele precisava se preparar. Era dia de mudança. Seu grupo iria deixar o terreno e desbravar a mata para encontrar um novo lar.

O sol da manhã ultrapassou as folhas de bananeira, focando seus olhos negros. As crianças brincavam ali perto imitando sons de bichos. Daíma se levantou e foi ao rio se purificar. Era preciso renovar as forças para o trabalho. O Rio Caminho, como o batizaram, emprestava suas águas para homens e mulheres se lavarem. Eram seis adultos e cinco crianças. Todos pareciam ter acordado há pouco tempo.

As mulheres se uniram para sair pela mata, colhendo o que sobrara de frutos para a viagem. Os homens se dirigiram às casas e começaram a desmontá-las. Ao passo de uma hora todos estavam prontos para seguir pela mata.

Não havia pais nem mães. As crianças brincavam com todos, sem se apegar a ninguém em especial. Mas elas não se atreviam a se dispersar dos adultos. Sabiam que as árvores escondem perigos atrás de cada folha.

Sempre um do grupo ficava responsável por ir à frente. Hoje este cargo era de Daíma. Ele ia quebrando galhos e afastando obstáculos, sempre atento à perigos, como cobras e onças. Mas o que ele mais temia encontrar era outro grupo. Em toda sua vida, ele nunca conheceu outras pessoas, apenas seu grupo. E a tradição deles era de que o mundo era suas casas. Quando deixavam um lugar, esse deixava de existir. Eles eram os únicos habitantes de seu mundo.

O caminho estava difícil. A mata fechada revelava plantas cheias de espinhos, difíceis de cortar. Daíma olhava atento para os lados, esperando sempre encontrar um animal ou outra clareira desabitada. E foi isso que ele encontrou. A clareira tinha uma fogueira de pedras ainda com sinais de fumaça e algumas folhas grandes cobrindo o chão. Daíma ficou paralisado ao ver um estranho recipiente. Parecia um cesto de material estranho e áspero. Resolveu olhar dentro. Encontrou instrumentos de corte, pós coloridos e outros tantos objetos que não conhecia. Ele enfiou a mão mais adentro e pegou um pedaço de metal brilhoso, que parecia retratar as copas das árvores. Daíma virou o objeto e contemplou sua imagem refletida nele. Assustado, deu um pulo para trás, deixando o espelho cair no chão.

Ao levantar, seus olhos se depararam com uma estranha visão. Parecia um sonho. Uma mulher com vestes desconhecidas estava parada ao lado de uma árvore, olhando para ele. Lentamente ela se aproximou do cesto e fechou-o, sem retirar o olhar de Daíma. Depois começou a recuar até o fim da clareira. Sem esperar, a mulher se virou e deixou Daíma sozinho.

O vento acordou-o de seu devaneio, trazendo de volta o barulho da mata e do grupo chegando.
Daíma não contou o que viu. Não falou sobre a mulher à ninguém. A visão ficaria para trás, como todos os lares que havia abandonado.
Era hora de construir um novo mundo.

Alcy Filho


Imagem: lucanicae

Triste






Triste é ver e não enxergar
Caminhar e não aprender
Escutar e não ouvir
Falar e não dizer
Criar e não expressar
Tocar e não sentir
Pensar e não discutir
Receber e não doar
Saber e não crer
Viver e não amar.

Alcy Filho


Imagem: zaxl4

Nada além de rosas





O jardim acolheu o sujeito cansado
Colocou-o num canteiro de rosas
Cantou belas cantigas sobre amor
Falou-lhe sobre paixão
Citou a liberdade e explicou os ideais
Deixou cair folhas de árvores velhas
E deu exemplo da desobediência
Mostrando um tronco seco, caído perto do riacho,
Disse que é preciso aprender, e só.

O sujeito se levantou, olhou o jardim e chorou.
Derramou as lágrimas do saber e do discernimento
Livrou-se de seus direitos e vontades
Olhou para o horizonte e viu seu novo destino
Atravessou o riacho e deixou o jardim, para conhecer a vida.

Pena que a vida não sabe falar
Senão teria dito que o jardim é traiçoeiro
Teria aberto os olhos do sujeito para uma nova realidade
Revelaria que a vida não é um canteiro de rosas
Que aprender sem ponderar leva à ilusão
E que a liberdade deve ser vivida e não citada.

Pena que a vida não sabe falar
O sujeito deverá diferenciar jardins de pântanos.

Nostalgia






Sinto falta
Do meu tempo de criança
Do primeiro grande amigo
De um tempo pouco distante.

Sinto falta
Da melodia da cidade
Que em sua quietude
Grandiosa se erguia.

Sinto falta
Das belas manhãs
Do café-da-mamãe
Das tardes de sossego.

Sinto falta da saudade
Sentimento que se vai
E não deixa rastro
Saudade que falta num mundo
Que necessita de memórias.

Sinto falta
Dessa nostalgia
Desse canto na escrita
Que me permite dizer:
Como eu sinto falta.

Alcy Filho


Imagem: imapix