Jogo de palavras




Penso em fazer poesia
Apenas penso e desisto
Pois clichês e pieguices
E sentimentos sem sentido
Enchem meus versos
E destroçam minhas idéias.

Penso em fazer poesia
Apenas penso
Pois o que crio é um jogo de palavras
Tosco e redundante
Que de poesia, só tem as rimas.

Alcy Filho


Imagem: Kuriru


---
Depois deste poema parei de tentar me forçar a escrever. Deixemos a inspiração fluir normalmente. Quero escrever mais do que um simples jogo de palavras ;)  #revoltajapassou

No elevador




      Quem conhece o RPG, sabe que uma partida pode gerar situações e histórias muito interessantes. Alguns anos atrás, quando iniciei minha faculdade, fiquei sem tempo de reunir os amigos para jogar. Até porque grande parte do meu antigo grupo se separou, indo cada um para um curso. Demorou pra conseguirmos nos reunir novamente.
      Enquanto isso, minha vontade de jogar continuava. Nas minhas andanças pelo Google encontrei o portal RPG Online. Através de um programa de bate-papo adaptado, era possível rolar partidas de RPG sem sair de casa. Não seria a mesma coisa, mas quebrava o galho. Procurando salas de jogo, encontrei uma Mestre, a Isis Bianca, interessada em narrar uma história curta, uma espécie de conto, em que cada participante descreveria as ações de seus personagens. Outro jogador e eu fomos escolhidos para a primeira sessão. No bate-papo tínhamos os apelidos de Makal e Kenrious, respectivamente. Escolhemos então os nomes dos nossos personagens (ele descreveria falas e ações do Marcos, e eu as do Nenzi, que agora mudou para Daniel). Todas as descrições do ambiente, e como ele reagia às nossas ações foram descritas pela Isis. Nossa sintonia em criar a história foi enorme, e culminou no conto "No elevador", publicado no portal RPG Online.
      O conto abaixo é o mesmo, contando com poucas alterações (como o nome do meu personagem). Espero que gostem ;)


      Um elevador, um prédio de escritórios. Trabalho, problemas, cansaço, tarefas sem fim que parecem tornar qualquer sinal de humanidade tão distante quanto um sonho. E então, um solavanco, e dentro da caixa de metal dois estranhos estão presos. Estranhos? Nem tanto. Já se viram ao certo, mas, na correria, são apenas dois autômatos, dois rostos na multidão. Mas agora não há multidão. As tarefas e a loucura do cotidiano parecem ter parado junto com as engrenagens do maquinário. Talvez constrangimento, talvez nervosismo, mas estão sós, os dois, presos num elevador.
      Marcos leva as mãos à cabeça, em um ato de cansaço e desespero. "Não, agora não. Por que isso?". Virou-se, apertando mais algumas vezes o botão que levava ao térreo, sem sucesso. Suspirou e se encostou com desânimo na parede do elevador. Daniel tenta não olhar para o lado. "Logo hoje..." pensa. "Preciso sair daqui". E procura um botão de ajuda no elevador. O botão cede em vão. O elevador não se move. Apenas um som surdo ecoando pelo fosso escuro abaixo e acima. O ar ali é parado, a luz, estéril e fria. No espelho do fundo, como se outros dois estivessem em posição semelhante, em um outro universo improvável.
      Marcos diz: - Espero que não tenha muitos compromissos hoje. Algo me diz que isso vai demorar... Ele se senta no chão do elevador, suspirando, desanimado.
      Daniel olha para o teto procurando algo. Como se quisesse achar uma saída. De soslaio, observa o estranho. "Realmente não posso ficar aqui...", pensa. Respira fundo e encara o sujeito: - Tem um cigarro? - pergunta.
      Marcos sorri. - Não fumo camarada... E acho que aqui não seria uma boa ideia. Iriamos morrer sufocados - olha em volta, vendo que a ventilação ali é mínima - Já vi você algumas vezes por aqui... Trabalha em que setor?
      Daniel volta a olhar para o teto. - Não trabalho aqui... Tem certeza que não tem um cigarro?
- Só se alguém colocou algum na minha calça... - puxa os bolsos da calça para fora, deixando-os do avesso - Realmente, nada... - suspira.
- Ah...Um bom cigarro nessas horas alivia. É uma pena não fabricarem elevadores para fumantes... "Se eu gritasse, alguém ouviria? Acho que não...", pensa Daniel. Ele se senta e observa o outro, sem desviar o olhar.
- Humm... Acho que venderia, ao menos - diz Marcos. - Não sei qual a graça em fumar. É fedido, faz mal, e te faz gastar grana. Qual a vantagem?
- Não sei... Não fumo. Mas nessas horas, penso em começar.
Marcos ri: - Essa foi ótima... Mas, se não trabalha aqui, o que veio fazer?
- Preciso falar com alguém...
- À trabalho?
      "Ele acertou...", pensa Daniel.
      No intervalo entre as palavras, o zumbido da luz. Um som antes mal percebido, pode ser quase insuportável agora, se você não puder com o silêncio. Talvez por isso a busca pelas palavras, mesmo que sobre o nada, sobre algo que pode não fazer a diferença. No relógio, mais um minuto passa. Mais um minuto de suas vidas, se esvaindo a cada segundo.
      Daniel diz: - Qual o motivo disso? Dois estranhos em um elevador. A quê isso leva?
- Não sei... - diz Marcos. - Li um livro uma vez em que dois estranhos ficavam presos no elevador. Eles aprendiam lições que mudariam radicalmente a vida dos dois. Bem, não acho que seja igual aqui, mas é interessante a ideia.
- Não penso que você tenha algo a me ensinar.
      Marcos sorri. - Todos temos cara! Todas as pessoas tem algo para ensinar, e que te faria ficar pensando durante horas... Ou anos...
      Daniel se levanta e começa a bater o pé com força no chão. - Isso te ensina algo?
- Sim... Que posso confiar nos fabricantes de elevadores. - Cruza os braços, suspirando outra vez.
      O som retumba no vazio do fosso e o elevador balança, sustentado pelos cabos de aço. Daniel para e olha novamente para o estranho, agora com um sorriso no rosto: - Se morresse, alguém sentiria falta de você?
      E mais um minuto se passa, sem que haja sinal de qualquer mudança, a não ser as que eles puderam causar. Os últimos ecos dos chutes de Daniel ainda se ouvem, fracos. Marcos diz: - Talvez... Mas acho que eu é que mais sentiria falta de mim mesmo. Talvez algum amigo, se é que tenho algum de verdade. Não sei...
- Amigos... Só servem pra nos trair e revelar que amizade não existe. - diz Daniel.
- Humm... Alguma lembrança amarga? - pergunta Marcos, fitando-o com atenção.
      Daniel encosta na parede. - Lembranças? Prefiro não guardar. No espelho, o outro Daniel encosta também. - Afinal, todos morrem, não é mesmo? Pra que guardar lembranças de futuros mortos?
      No relógio, os segundos piscam implacáveis.
- Exato, todos morrem. - diz Marcos. - Mas enquanto vivemos, temos nossas lembranças. Elas nos mantem vivos. Como acha que seria se acordasse todo o dia sem lembrança alguma? Imagine levantar de manhã e não saber nada de nada. Nem seu próprio nome, ou de onde veio...
      "Isso não vai me levar a nada... Será que chego a tempo?". Daniel se arrasta na parede até se sentar no chão.
- Na verdade, eu me lembro de algo. Lembro dele ainda vivo... Seu sorriso era o único que conseguia me contagiar. - abaixa a cabeça.
- Um parente? - pergunta Marcos, atento.
- Parente? Não... Acho que nenhum parente teria me feito tão feliz - Daniel levanta a cabeça. - Sabe, amizades estão fadadas a terminar. Não quero mais iniciar algo com fim pré-determinado.
- Então porque vive, se a vida tem um fim pré-determinado?
      "Acho melhor desistir! Não vão me deixar entrar...", pensa Daniel. - Está dizendo para eu cometer suicídio?
      À luz fria, os dois homens sentados, no chão de uma caixa de metal pendurada no meio de uma construção de aço e concreto. No entanto, estão vivos, e é como se uma fina abertura se abrisse na casca que repousa sobre a realidade, sob a qual todos buscam manter a vida muito bem escondida e... congelada.
- Só estou dizendo que você está encarando as coisas de modo errado. Não temos que pensar que algo está fadado a terminar. E sim fazer valer enquanto durar. - diz Marcos, e suspira.
- É o que estou tentando - Daniel passa o dedo no chão. Como se desenhasse algo.
      Marcos se mantem silencioso por um tempo. Então pergunta: - Qual era o nome dele?
- Carlos... Meu melhor... - "Amigo", pensa. Daniel abaixa novamente a cabeça. Algo começa a pingar no chão.
      Marcos olha para o teto, como se pudesse ver através dele e admirar o céu e as estrelas. - Valeu a pena? A amizade? - pergunta.
- Naquele tempo sim. Mas agora é inválida - Daniel se levanta de repente. Enxuga os olhos. - Odeio essas ceninhas sentimentais.
      Por fim, um solavanco, e o elevador recomeça a jornada rumo ao seu destino. E qual seria ele? O trabalho, o tédio, o apressado corre-corre, eclipsando a luz das estrelas, e até mesmo a do sol, por trás de coisas inúteis que todos perseguem como moscas? Rumo a amores perdidos, impossíveis, malfadados e improváveis? Ou rumo a um outro elevador, apenas maior, e mais abarrotado?
      Daniel se endireita e olha para a porta do elevador. Marcos pergunta: - Mudaria algo? Faria diferente se pudesse voltar atrás? Teria escolhido não tê-lo conhecido? - Agora fitava Daniel, sério, mas atencioso, compreensivo.
- Nunca escolheria algo assim...
      O elevador caminha e os números mudam no mostrador. E mais um minuto. Daniel suspira e olha para o teto. Marcos levanta-se, sorrindo, de um modo satisfeito e amigável. Aproxima-se, ficando de frente para a porta e ao lado de Daniel. Coloca a mão em seu ombro. - Então valeu a pena. São essas lembranças que te fazem humano.
      Daniel olha para o homem e dá um profundo sorriso. Seus olhos em paz.
      E a porta se abre. Olhares impacientes de outros usuários que esperavam sua vez e um técnico que, ainda abaixado ao lado do painel de controle do elevador, ri nervosamente, mas satisfeito, pois seu trabalho estava concluído.
- Bem vindos de volta...

Isis Bianca, Makal e Kenrious (Alcy Filho)

Só em Ti, Senhor




Composição: Alcy Filho e Bruno Moraes
Produção: Fábio Dias
Álbum: No coração de um amigo (Bruno Moraes)

Quando forças não posso encontrar
O coração já não posso escutar
Se os momentos de dor já não posso aguentar
Tua mão me levanta
Fortalece minha fé
Cura minhas feridas
Me faz continuar

Só em Ti, Senhor
Eu posso encontrar
Esperança na dor
Forças pra caminhar...

Não me deixe esquecer
Que grandioso Tu És
Eis-me aqui, Senhor
Quero carregar a minha cruz...

Obrigado, Senhor
Obrigado, Jesus
Obrigado por Tua liberdade
Obrigado, Senhor

Obrigado, Senhor
Obrigado, Jesus
Obrigado por Teus livramentos
Obrigado, Senhor

Tenho de andar




Sempre me atraso
Tenho de andar
Não possuo asas
E nem saberia usar.

Há quem alcance
Aqueles altos edifícios
E pule de telhado em telhado
Coisa que não consigo.

Por isso caminho pelas ruas
Velhas e poeirentas
Subo por elevadores
E escadas quebradas
Todos de um tempo distante
Quando ninguém sabia voar.

Sempre me atraso
Não sei voar
Por isso tenho de andar
Sempre.

Alcy Filho


Imagem: bittertaste

O que é Biodak?



Biodak surgiu da minha paixão pelo RPG. Foi ele o responsável por abrir minha mente, fazendo universos e histórias brotarem na minha imaginação. De todos os mundos, o mais desenvolvido foi Biodak, que na verdade é um continente. Nele vivem criaturas fantásticas, tais como elfos, humanos e anões. A minha influência é clara: Tolkien. Mas que escritor de fantasia medieval não é influenciado por ele? Pra falar a verdade, sinto-me honrado quando alguém diz que meus textos lembram os dele. Sempre tento colocar minha personalidade, e um pouco de originalidade na história, mas sei que Tolkien acaba visitando todas elas.

Para contar os inúmeros eventos de Biodak, resolvi começar a série “Os Contos de Biodak”. Assim, vou apresentando aos poucos os acontecimentos e ambientando os leitores nesse continente que não para de crescer.
Então, se você quer conferir desde os primeiros contos que escrevi (alguns só podem ser entendidos se lidos na ordem correta), segue a lista completa:

O último toque de Amdu
A Torre de Thur
Três desejos do oásis
Destroços e Retalhos - Parte 1
Cinco criaturas do norte
Mundo Escuro

Os Contos de Biodak - Cinco criaturas do norte




          Durante séculos o povo de Hur viveu recluso em seu próprio reino. As terras eram demarcadas ao sul pelas Montanhas Altares, ao oeste pelas Colinas Lunares, ao leste pelas Montanhas Caldir e, por fim, delimitadas ao norte pelo Paredão de Akina.
          Somando com a história dos pequenos de Nerdick, e com os humanos em Wadoj, a história dos elfos de Hur é a terceira a tratar de êxodo. Ela conta como eles abandonaram o reino, seguiram a estrada Perk e se tornaram o Povo do Lago. Nesta primeira parte são mostradas as criaturas que causaram a fuga pelas Montanhas Caldir.


          O rei alisava seu manto de seda tentando se lembrar da última vez que o tinha usado. As assembleias eram raras, assim como as decisões provindas das mesmas. Os representantes de cada distrito se reuniam para, durante dias, tratarem dos problemas do reino.
          O assunto em pauta parecia novo e mais polêmico que os anteriores. Nada que por si só chamasse a atenção do rei, que começara a admirar um pássaro construindo um ninho em uma das janelas do salão.
- Vossa Majestade quer dar sua opinião?
          A voz do conselheiro Aldo trouxe o rei de volta a realidade. Dezenas de olhos ansiosos encaravam o herdeiro da coroa, sentado na ponta da mesa bronze.
- Bem, poderiam me colocar a par dos fatos? – perguntou o rei, visivelmente perdido no assunto.
          Os representantes trocaram olhares apreensivos enquanto Aldo fazia um resumo do que havia sido discutido.
- Erani, o representante do distrito de Altar, propôs a exploração da estrada Perk além das Montanhas Caldir.
          Um burburinho tomou conta do salão. Erani começou a discutir com alguns representantes que discordavam de sua proposta. O rei entendeu o porquê de tanta polêmica.
- Vejo que o problema que enfrentamos nesta assembleia – começou ele, fazendo o salão se silenciar. – envolve mais que interesses individuais. O que o nosso companheiro de Altar propõe é explorar a estrada Perk, correndo o risco de terminar como nossos antepassados que ousaram transpor aquelas montanhas...
- Vossa Alteza me perdoe, mas tenho que frisar... – de repente Erani parou e percebeu o insulto que cometia ao interromper o líder. Porém o rei não pareceu se importar e acenou para que o representante continuasse. – Recordo-me bem das histórias sobre nossos antepassados que nunca voltaram ao passar pelas Colinas Lunares, ou ao tentar transpor as Montanhas Caldir. Mas os tempos são outros e os perigos que um dia dominaram tais regiões, hoje podem estar extintos.
          Os representantes voltaram à discussão, alguns inconformados, outros a favor de Erani. O falatório foi interrompido por um jovem mensageiro que entrou apressado pelo portal principal. Estava sujo e cansado de uma longa viagem. Passou correndo pelo tapete vermelho que atravessava o grande salão real. A luz do dia começava a abandonar o salão e as sombras das poltronas se alongavam pelo chão de pedra polida.
- Mensagem do Paredão! – gritava o mensageiro, ao chegar perto do rei. – Tenho uma mensagem do Paredão de Akina!
- Tragam água e providenciem hospedagem ao nosso jovem aqui – disse o rei a um grupo de camareiras que assistia a assembleia. – E você, mensageiro, transmita a mensagem.
          O jovem tomou fôlego e falou pausadamente.
- Os observadores da segunda torre de Akina avistaram uma criatura. Uma grande criatura. Disseram que ela voava sobre as árvores do paredão e, por vezes, descansava nas rochas e observava a torre.
          O mensageiro parou e tomou a água que a camareira havia buscado.
– E também afirmaram que um incêndio se formou no paredão, exatamente no local onde a criatura sobrevoava.
- Quando tais fatos ocorreram? – perguntou o rei.
- Há duas semanas.
- Duas semanas? – bradou o rei, espantado. – São três dias a cavalo da segunda torre até aqui! Por que demorou duas semanas para transmitir a mensagem?
          Trêmulo, o jovem tomou outro gole d’água.
- O problema é que essa criatura foi embora logo após o incêndio e não se mostrou durante uma semana. Porém, após este prazo, ela voltou a ser avistada e acompanhada de mais quatro dela. No dia seguinte fui enviado a cada distrito, levando a mensagem da criatura e alertando para a evacuação.
          Um novo pesar caiu sobre os olhos do rei. Percebeu que algo maior residia na mensagem do jovem.
- Evacuação? – perguntou ele, com a voz embargada. – Tem certeza que a ordem que lhe deram em Akina foi de evacuação?
- Sim, Alteza. – o jovem parou de novo. Fazia um tremendo esforço para transmitir aquelas palavras. – Quando a mensagem me foi passada, o distrito de Akina reunia exércitos para enfrentar as cinco criaturas, que voavam para a cidade queimando tudo a sua volta.



          Os pastos ao longe ardiam em chamas. O comandante Daroy tomou a frente do campo de batalha. Ele sempre imaginou que um dia algo parecido iria acontecer. Havia um motivo de seus antepassados terem construído torres de vigilância na região do Paredão de Akina. Aquelas criaturas deviam ser a ameaça que rondou Hur centenas de anos atrás.
          Daroy colocou o binóculo e avistou o pasto adiante. Nenhum sinal das criaturas. Com certeza iriam atacar de surpresa. Era hora de preparar os soldados. Muitos tinham atendido ao chamado de alerta, vindo de distritos vizinhos. Daroy achava que poderia conter as criaturas, enquanto o resto do reino evacuava.
          O comandante montou seu cavalo e começou a andar em frente o pelotão.
- Guerreiros élficos de Hur, hoje é nossa responsabilidade proteger nosso reino. É nossa responsabilidade conter as criaturas enquanto nossas mulheres e crianças procuram um lugar protegido nas montanhas – Daroy parou e lançou o olhar ao norte. Algo parecia se mover nas chamas. Tinha de terminar o pronunciamento. – Hoje lutaremos não só pelo rei, mas por tudo que é nosso por direito. Não deixaremos que as criaturas do norte nos atinjam, pois estamos preparados. Estamos preparados para conter o que for. Em nome de Hur!
          Os gritos dos soldados ecoaram pelo pasto. Gritavam “Hur!”, com toda a força de seus pulmões. O comandante fez um sinal e os gritos cessaram.
- Hoje não somos maridos, não somos empregados, não somos apenas elfos. Somos os elfos de Hur e mostraremos não só força, mas sabedoria!
          Mais uma vez os soldados comemoraram e gritaram o nome de Hur. Tambores tocaram invadindo o campo de batalha com o hino do reino. Estavam preparados, para o que fosse.
          Uma trombeta soou e os tambores e a gritaria cessaram. Os soldados ficaram a postos, com visão focada nas asas que sopravam o fogo logo à frente.
- Arqueiros, preparar! – gritou Daroy. – Apontar.
          Finalmente a criatura saiu das chamas e voou alto pelos céus, em direção ao pelotão. Era gigantesca, as asas pareciam de morcego, tinha chifres de marfim na cabeça e por toda coluna vertebral. Batia com força intimidadora as asas, preparando as garras dos pés para atacar os soldados.
          O comandante engoliu em seco ao ver a criatura, era muito pior do que jamais teria imaginado. Colocou todas as suas esperanças nas flechas dos arqueiros. Esperou a criaturas descer dos céus. Foi quando ela deu um rasante sobre o pelotão que ele gritou.
- Fogo!
          Centenas de flechas invadiram o céu, atingindo a criatura. Mas nenhuma surtiu efeito e o monstro voou sobre os soldados, derrubando-os com suas garras. Novamente voltou aos céus.
          Daroy observou o grupo de soldados caídos e pegou seu arco.
- Preparar! – sua ordem foi repetida pelos oficiais espalhados pelo campo. – Apontar!
          Novamente o monstro desceu dos céus, mirando um grupo de arqueiros no meio dos soldados. O comandante gritou “Fogo!”, e mais uma vez as flechas ricochetearam nas escamas na gigantesca criatura. Ela sobrevoou os soldados e, de suas narinas, surgiram labaredas de fogo.
          Os arqueiros correram pelo campo de batalha, ardendo em chamas. Daroy preparava-se para o ataque, quando a trombeta voltou a soar. Virou o cavalo para o norte e viu outras três criaturas voarem pelo campo.
          Daroy acenou para os oficiais que comandavam os canhões. Esperou. Os monstros avançavam de maneira determinada. Esperou. De súbito as criaturas pararam e aterrizaram logo à frente. Centenas de olhos élficos as observavam, sem terem a mínima ideia do que viria depois. Elas abaixaram o corpo e praticamente se deitaram nos campos.
          O comandante abaixou seu arco e olhou através do binóculo. Os monstros estavam com a respiração ofegante, igual a crianças com asma. Pensou que talvez haviam desistido. Tolo pensamento. Uma repentina fumaça saiu das narinas de cada criatura e inundou o campo. Era impossível enxergar. Os tiros de canhão surgiram sem autorização do comandante.
          Daroy chicoteou de leve seu cavalo e saiu em disparada pela fumaça. Ultrapassou corpos em chamas e soldados que corriam para todos os lados, hipnotizados pelo medo. Até que conseguiu sair da fumaça. Olhou para os céus e avistou as criaturas voando alto, mirando sem errar e mergulhando o exército em chamas.
          Em um movimento inútil, empunho seu arco. Seus pensamentos eram outros. Não conseguia se importar com os soldados, nem com o reino, nem com aquela batalha. Só pensava na mulher e nas crianças. Talvez o ato de mirar no casco impenetrável das criaturas significasse algo em sua mente. Absorto em seus pensamentos, não ouviu o leve pouso do monstro atrás de si. Sentiu um calor infernal, como se o mundo inteiro fosse uma enorme bola de fogo.
          Daroy abaixou o arco e virou o cavalo em direção à criatura. Ficou frente a frente com o monstro que destruiria grande parte de Hur. O grande lagarto bufava e tinha o olhar distante. Olhos brancos, cegos. Daroy abaixou a cabeça, quando a gigantesca pata o atingiu.
          E o fogo cessou.

Alcy Filho


Imagem: treijim