No elevador




      Quem conhece o RPG, sabe que uma partida pode gerar situações e histórias muito interessantes. Alguns anos atrás, quando iniciei minha faculdade, fiquei sem tempo de reunir os amigos para jogar. Até porque grande parte do meu antigo grupo se separou, indo cada um para um curso. Demorou pra conseguirmos nos reunir novamente.
      Enquanto isso, minha vontade de jogar continuava. Nas minhas andanças pelo Google encontrei o portal RPG Online. Através de um programa de bate-papo adaptado, era possível rolar partidas de RPG sem sair de casa. Não seria a mesma coisa, mas quebrava o galho. Procurando salas de jogo, encontrei uma Mestre, a Isis Bianca, interessada em narrar uma história curta, uma espécie de conto, em que cada participante descreveria as ações de seus personagens. Outro jogador e eu fomos escolhidos para a primeira sessão. No bate-papo tínhamos os apelidos de Makal e Kenrious, respectivamente. Escolhemos então os nomes dos nossos personagens (ele descreveria falas e ações do Marcos, e eu as do Nenzi, que agora mudou para Daniel). Todas as descrições do ambiente, e como ele reagia às nossas ações foram descritas pela Isis. Nossa sintonia em criar a história foi enorme, e culminou no conto "No elevador", publicado no portal RPG Online.
      O conto abaixo é o mesmo, contando com poucas alterações (como o nome do meu personagem). Espero que gostem ;)


      Um elevador, um prédio de escritórios. Trabalho, problemas, cansaço, tarefas sem fim que parecem tornar qualquer sinal de humanidade tão distante quanto um sonho. E então, um solavanco, e dentro da caixa de metal dois estranhos estão presos. Estranhos? Nem tanto. Já se viram ao certo, mas, na correria, são apenas dois autômatos, dois rostos na multidão. Mas agora não há multidão. As tarefas e a loucura do cotidiano parecem ter parado junto com as engrenagens do maquinário. Talvez constrangimento, talvez nervosismo, mas estão sós, os dois, presos num elevador.
      Marcos leva as mãos à cabeça, em um ato de cansaço e desespero. "Não, agora não. Por que isso?". Virou-se, apertando mais algumas vezes o botão que levava ao térreo, sem sucesso. Suspirou e se encostou com desânimo na parede do elevador. Daniel tenta não olhar para o lado. "Logo hoje..." pensa. "Preciso sair daqui". E procura um botão de ajuda no elevador. O botão cede em vão. O elevador não se move. Apenas um som surdo ecoando pelo fosso escuro abaixo e acima. O ar ali é parado, a luz, estéril e fria. No espelho do fundo, como se outros dois estivessem em posição semelhante, em um outro universo improvável.
      Marcos diz: - Espero que não tenha muitos compromissos hoje. Algo me diz que isso vai demorar... Ele se senta no chão do elevador, suspirando, desanimado.
      Daniel olha para o teto procurando algo. Como se quisesse achar uma saída. De soslaio, observa o estranho. "Realmente não posso ficar aqui...", pensa. Respira fundo e encara o sujeito: - Tem um cigarro? - pergunta.
      Marcos sorri. - Não fumo camarada... E acho que aqui não seria uma boa ideia. Iriamos morrer sufocados - olha em volta, vendo que a ventilação ali é mínima - Já vi você algumas vezes por aqui... Trabalha em que setor?
      Daniel volta a olhar para o teto. - Não trabalho aqui... Tem certeza que não tem um cigarro?
- Só se alguém colocou algum na minha calça... - puxa os bolsos da calça para fora, deixando-os do avesso - Realmente, nada... - suspira.
- Ah...Um bom cigarro nessas horas alivia. É uma pena não fabricarem elevadores para fumantes... "Se eu gritasse, alguém ouviria? Acho que não...", pensa Daniel. Ele se senta e observa o outro, sem desviar o olhar.
- Humm... Acho que venderia, ao menos - diz Marcos. - Não sei qual a graça em fumar. É fedido, faz mal, e te faz gastar grana. Qual a vantagem?
- Não sei... Não fumo. Mas nessas horas, penso em começar.
Marcos ri: - Essa foi ótima... Mas, se não trabalha aqui, o que veio fazer?
- Preciso falar com alguém...
- À trabalho?
      "Ele acertou...", pensa Daniel.
      No intervalo entre as palavras, o zumbido da luz. Um som antes mal percebido, pode ser quase insuportável agora, se você não puder com o silêncio. Talvez por isso a busca pelas palavras, mesmo que sobre o nada, sobre algo que pode não fazer a diferença. No relógio, mais um minuto passa. Mais um minuto de suas vidas, se esvaindo a cada segundo.
      Daniel diz: - Qual o motivo disso? Dois estranhos em um elevador. A quê isso leva?
- Não sei... - diz Marcos. - Li um livro uma vez em que dois estranhos ficavam presos no elevador. Eles aprendiam lições que mudariam radicalmente a vida dos dois. Bem, não acho que seja igual aqui, mas é interessante a ideia.
- Não penso que você tenha algo a me ensinar.
      Marcos sorri. - Todos temos cara! Todas as pessoas tem algo para ensinar, e que te faria ficar pensando durante horas... Ou anos...
      Daniel se levanta e começa a bater o pé com força no chão. - Isso te ensina algo?
- Sim... Que posso confiar nos fabricantes de elevadores. - Cruza os braços, suspirando outra vez.
      O som retumba no vazio do fosso e o elevador balança, sustentado pelos cabos de aço. Daniel para e olha novamente para o estranho, agora com um sorriso no rosto: - Se morresse, alguém sentiria falta de você?
      E mais um minuto se passa, sem que haja sinal de qualquer mudança, a não ser as que eles puderam causar. Os últimos ecos dos chutes de Daniel ainda se ouvem, fracos. Marcos diz: - Talvez... Mas acho que eu é que mais sentiria falta de mim mesmo. Talvez algum amigo, se é que tenho algum de verdade. Não sei...
- Amigos... Só servem pra nos trair e revelar que amizade não existe. - diz Daniel.
- Humm... Alguma lembrança amarga? - pergunta Marcos, fitando-o com atenção.
      Daniel encosta na parede. - Lembranças? Prefiro não guardar. No espelho, o outro Daniel encosta também. - Afinal, todos morrem, não é mesmo? Pra que guardar lembranças de futuros mortos?
      No relógio, os segundos piscam implacáveis.
- Exato, todos morrem. - diz Marcos. - Mas enquanto vivemos, temos nossas lembranças. Elas nos mantem vivos. Como acha que seria se acordasse todo o dia sem lembrança alguma? Imagine levantar de manhã e não saber nada de nada. Nem seu próprio nome, ou de onde veio...
      "Isso não vai me levar a nada... Será que chego a tempo?". Daniel se arrasta na parede até se sentar no chão.
- Na verdade, eu me lembro de algo. Lembro dele ainda vivo... Seu sorriso era o único que conseguia me contagiar. - abaixa a cabeça.
- Um parente? - pergunta Marcos, atento.
- Parente? Não... Acho que nenhum parente teria me feito tão feliz - Daniel levanta a cabeça. - Sabe, amizades estão fadadas a terminar. Não quero mais iniciar algo com fim pré-determinado.
- Então porque vive, se a vida tem um fim pré-determinado?
      "Acho melhor desistir! Não vão me deixar entrar...", pensa Daniel. - Está dizendo para eu cometer suicídio?
      À luz fria, os dois homens sentados, no chão de uma caixa de metal pendurada no meio de uma construção de aço e concreto. No entanto, estão vivos, e é como se uma fina abertura se abrisse na casca que repousa sobre a realidade, sob a qual todos buscam manter a vida muito bem escondida e... congelada.
- Só estou dizendo que você está encarando as coisas de modo errado. Não temos que pensar que algo está fadado a terminar. E sim fazer valer enquanto durar. - diz Marcos, e suspira.
- É o que estou tentando - Daniel passa o dedo no chão. Como se desenhasse algo.
      Marcos se mantem silencioso por um tempo. Então pergunta: - Qual era o nome dele?
- Carlos... Meu melhor... - "Amigo", pensa. Daniel abaixa novamente a cabeça. Algo começa a pingar no chão.
      Marcos olha para o teto, como se pudesse ver através dele e admirar o céu e as estrelas. - Valeu a pena? A amizade? - pergunta.
- Naquele tempo sim. Mas agora é inválida - Daniel se levanta de repente. Enxuga os olhos. - Odeio essas ceninhas sentimentais.
      Por fim, um solavanco, e o elevador recomeça a jornada rumo ao seu destino. E qual seria ele? O trabalho, o tédio, o apressado corre-corre, eclipsando a luz das estrelas, e até mesmo a do sol, por trás de coisas inúteis que todos perseguem como moscas? Rumo a amores perdidos, impossíveis, malfadados e improváveis? Ou rumo a um outro elevador, apenas maior, e mais abarrotado?
      Daniel se endireita e olha para a porta do elevador. Marcos pergunta: - Mudaria algo? Faria diferente se pudesse voltar atrás? Teria escolhido não tê-lo conhecido? - Agora fitava Daniel, sério, mas atencioso, compreensivo.
- Nunca escolheria algo assim...
      O elevador caminha e os números mudam no mostrador. E mais um minuto. Daniel suspira e olha para o teto. Marcos levanta-se, sorrindo, de um modo satisfeito e amigável. Aproxima-se, ficando de frente para a porta e ao lado de Daniel. Coloca a mão em seu ombro. - Então valeu a pena. São essas lembranças que te fazem humano.
      Daniel olha para o homem e dá um profundo sorriso. Seus olhos em paz.
      E a porta se abre. Olhares impacientes de outros usuários que esperavam sua vez e um técnico que, ainda abaixado ao lado do painel de controle do elevador, ri nervosamente, mas satisfeito, pois seu trabalho estava concluído.
- Bem vindos de volta...

Isis Bianca, Makal e Kenrious (Alcy Filho)

Um comentário:

Unknown disse...

Caramba que massa, ficou muito legal o conto a três mãos, ou como diria o baiano mães, achei massa mesmo parabéns pra vocês ;p

e as vezes todos nós devemos parar um pouco da rotina loca e respirar, refletir e ate mesmo desabafar ou falar coisas sentimentais ;)