Os Contos de Biodak - Destroços e Retalhos - Parte 1






Após a fuga dos pequenos das Colinas Frias, o lugar encontrado por eles, e transformado em seu novo lar, foi a Floresta Dart-Mor. Por algum motivo os seres da Torre não ousavam enfrentar as gigantescas árvores que rondavam as Colinas. Por cerca de duzentos anos os pequenos fizeram das árvores sua nova casa, para depois migrarem à Planície Roxa e, finalmente, estabelecerem-se em Feenos, protegidos pelo Paredão de Akina.

Mas antes de os pequeninos abandonarem o território seguro de Dart-Mor, um velho contador de histórias resolveu voltar às Colinas Frias. Lugar habitado pelas mais frias e cruéis criaturas, libertadas da velha e misteriosa Torre.


Agda batia a colher de bronze contra o prato de madeira. Encostou o cotovelo sobre a mesa e repousou a cabeça sobre a mão esquerda. Começou a remexer seus legumes.

- Pare de brincar com a comida, Agda! – vociferou Tami, tentando mastigar a hortaliça que o marido havia trazido.
- Mas, mãe... – resmungou a garota, sem ânimo. – Isso tem gosto de terra!
- Bem, se você não tivesse experimentado terra, talvez gostasse um pouco mais das verduras que seu pai traz.
- Não a force, Tami... – disse Yann que não havia dito uma palavra desde que chegara da colheita. – Nem eu consigo engolir esse capim.

Ele largou o talher no prato e saiu da mesa. Passou pela porta da sala e ficou na sacada, observando as outras casas. Eram todas feitas de bambu, sustentadas pelas várias sequóias da floresta Dart-Mor. Era noite e a maioria das luzes estava ligada. Porém uma casa em especial permanecia sob total escuridão. Yann encostou os braços no parapeito e respirou o ar puro da floresta.

Tami saiu da sala e ficou observando as casas ao lado do marido. Sabia bem o que o incomodava.
- Ele insiste em voltar? – falou após um longo silêncio.

Yann abaixou a cabeça e deixou os cabelos balançarem à brisa que batia na copa da árvore.

- Ainda não acredito que ele veio de lá... – disse, observando o aparente abismo que se estendia abaixo. – Agora quer voltar. Diz que tem de buscar a mãe e que é tudo culpa dele.
- Ninguém sabe o que acordou a Torre! – falou Tami. – Mesmo que ele diga que foram três garotos, como alguém poderia saber? E se ele tem uma mãe lá, já deve estar morta. Não tem como ter sobrevivido todo esse tempo. Me dá arrepios só de pensar no que aquilo se tornou.
- Ele parece nem sentir – disse Yann, curvando a cabeça em direção à uma casa logo a frente. Da porta da frente saía um velho, de mochila nas costas e portando um cajado. Ele começou a descer a longa escadaria, mas parou por um momento. Virou-se para trás e encarou Yann.
- Não faça nada – sussurrou Tami. – Já tentamos tudo o que pudemos. Se ele quer se sacrificar, deixe-o ir.
- Ele não vai conseguir sair de lá. Não agora.

O velho tornou a se virar e continuou a descer os degraus. Tami e Yann o observaram sumir na escuridão lá embaixo. Ela fixou o olhar nas copas das árvores, logo acima.

- Resta esperar que as Colinas Frias não o deixem entrar.


Naquele ponto da floresta era possível sentir a presença da Torre. Ela estava a quilômetros de distância, mas emanava um mal tão grande como nunca poderia se imaginar. Faltava pouco para o velho pequenino alcançar a orla da Floresta Dart-Mor. Por anos aquelas árvores serviram de abrigo contra as trevas que assolaram as Colinas Frias. O velho já sentia calafrios só de lembrar o terror que voltaria a enfrentar. Ele enxugou o suor de sua face queimada e continuou a viagem.

Enquanto caminhava pela estrada proibida, as árvores mudavam de aparência. De um marrom vivo passavam a um cinza disforme. Não havia mais brisa, não havia mais o costumeiro canto dos pássaros. O velho tinha chegado à fronteira entre Dart-Mor e as Colinas Frias.

Há tempos ele não via um céu tão escuro. Pelo visto os raios de sol nunca mais alcançaram os descampados das colinas. Um cheiro pútrido invadiu as narinas do pequeno, lembrando-o dos terríveis acontecimentos que nunca saíram de seus sonhos. Sentiu vontade de vomitar, queria desistir daquela viagem suicida, mas não poderia viver por mais tempo com aquela culpa.

Ele sabia que quando deixasse a floresta, tudo iria mudar. Quem olhasse de longe pensaria que as Colinas Frias tinham sido acometidas por uma sombra, e nada mais. Enorme engano. Ao passar pelo último galho morto de Dart-Mor, uma escuridão engoliu o pequenino. Ele sentia tudo queimar a sua volta, num calor quase insuportável. Sem pensar duas vezes, o velho continuou andando, embrenhando pelo inferno, sem mais enxergar.

Alcy Filho

Os Contos de Biodak - Três desejos do Oásis






O modo como agia. Seu caminhar e seus cabelos. De olhos inocentes à certeza de que muito havia se perdido. O rio e o dragão levaram a beleza da infância. Tudo mudara. Ao menos assim pensava Yana.

Enquanto saia do Rio Cran, ia tentando se familiarizar com o lugar. Nunca havia conhecido o deserto. Sentia os pés afundando no terreno árido. Os olhos não poderiam mostrar a imensidão de areia, intimista e contrastante ao céu azul. Mesmo cega diante a paisagem, Yana conseguia sentir terror naquele lugar.

Aos poucos a menina foi avançando pelo deserto. Implorava aos céus por chuva, que nunca viria. Tateava o nada em busca de abrigo. Era muito diferente da floresta. Ela conhecia cada galho e cada trilha. Mas no deserto sua cegueira chegava ao ápice. Só lhe restava confiar nos desatentos pés, que continuavam a levá-la para o leste.


Ao avistar o Oásis, Hiugo apertou com força o cajado no peito e desapareceu do deserto.
Quando reapareceu em meio à densa floresta, lembrou do aviso do gólem das Pirâmides de Ferro. “Não se demore nas árvores”. Até a seiva que corria pelas plantas daquele lugar estava amaldiçoada.

O mago Hiugo abaixou o capuz e se apressou a atravessar a mata espessa. Mas quanto mais avançava, mais densa ficava a floresta. Em certos pontos os galhos pareciam estar alocados em forma de teia. Com o cajado em punho, Hiugo proferiu um encantamento que murchou os troncos e galhos a sua volta.

Enquanto caminhava, a floresta ia abrindo caminho, numa sofrida redenção. O mago não parava de pensar na criatura que iria encontrar. Seria verdade tudo aquilo que as inscrições diziam? Esta era a única chance de seu povo sair de Biodak.

Hiugo estava decidido a encontrar o último dragão de Amdu. E diante de seu objetivo ele não percebia que a floresta ia aprisionando-o ao Oásis.


Ghiardo continuava a se guiar pelo estranho odor. Não podia enxergar a destruição que causara na floresta, mas conseguia ver o medo que causava. Um dragão carecia de impor seus domínios e força. Desde a Grande Divisão, o restante dos dragões tinha sucumbido ao poderio humano ou à inteligência élfica. Agora que a chama de Ghiardo começava a apagar, era preciso encontrar o sucessor.

Enquanto avançava sobre as cinzas de Dart-Mor, ele lembrava que não deveria seguir muito ao norte. Nem os dragões ousavam adentrar as Colinas Frias, depois que os tesouros da torre tinham sido liberados. Se o sucessor não se achasse na floresta destruída, teria de rumar direto para as Pirâmides de Ferro.

Era inesperado que as árvores morressem com tanta tranqüilidade. Não pareciam ser como as que cresciam no Oásis do deserto de Amdu. Aquelas eram tão cruéis quanto os dragões. Mas Dart-Mor repousava e aparente paz, enquanto as asas do grande Ghiardo espalhavam as cinzas.

O mais curioso era aquele odor. Não era ódio, mas podia ser sentido. Era tão forte que o havia atraído desde o Oásis. Porém não foi isso que o fez descer das nuvens e aterrissar nos galhos queimados da floresta. Perto da destruição, onde as chamas ainda não haviam consumido as folhas, morava um sentimento de esperança, que vagava pelas árvores e se confundia ao vento. Tal sentimento o repugnava.

Ao olhar para baixo viu o brilho das fadas se espalharem. Pelo visto queriam avisar as outras criaturas sobre o perigo. Isso não seria problema. O instinto de Ghiardo indicava que seu sucessor viria antes que a floresta pudesse revidar.

Quando suas garras encontraram o solo, o dragão pôde sentir que um pouco da esperança havia sucumbido. Um pouco, mas não toda. Ainda havia uma grande parte deste sentimento ali, em pé diante às cinzas. Era esperança unida a um outro sentimento, difícil de ser interpretado pelos dragões: coragem. Tudo isso em uma pequena criatura.

Coragem em forma de menina.


Yana seguia afundando e tropeçando na areia. O sol escaldante não tirava, e sim lhe dava forças. As horas pareciam voar, assim como o corpo de Yana. A menina demorou a perceber que os pés flutuavam e se deixavam levar pelo deserto.

Algo em seu interior queimava e clamava para sair. Seus braços começavam a roçar em troncos e galhos. Os quais a abraçavam e ajudavam a levá-la adiante. Não estava mais no deserto. O lugar era úmido e aconchegante.

Tudo lhe parecia familiar. Lembrava de suas brincadeiras com o irmão, seu povo, sua floresta. No entanto eram apenas lembranças. Ela estava no coração do Oásis de Amdu.

Ao ser deixada em uma grande rocha, ela pôde perceber porque voava. Suas asas descansaram nas raízes que cobriam o lugar. As escamas que revestiam seu corpo arranhavam o chão, mas pouco incomodava. O sono pesado a fazia esquecer de tudo aquilo. Aos poucos esquecia do irmão, do dragão e do rio.

Dias depois, quando acordou, já não era mais humana.

Alcy Filho


Imagem: j0Y-STiCK

Os Contos de Biodak - A Torre de Thur








Os três garotos pararam atrás do último carvalho da floresta que rodeava a colina. De acordo com o mapa de Ordi, faltavam poucos metros para alcançarem o portal. Fazia um frio de congelar os ossos, mas a vista compensava todo e qualquer esforço. A torre mostrava-se ainda mais monstruosa de perto, sendo impossível avistar seu topo.
- Será que é verdade? – disse Amir, tremendo. – Quero dizer, porque é que as pessoas isolaram a torre? Nós conhecemos a lenda.
- Lenda é lenda – disse Ordi, levantando-se e tentando ver através do matagal que rodeava a torre. – As pessoas só deixaram de vir aqui por causa de uma estúpida lenda de demônios. Eu continuo achando que tem um tesouro aqui. Alguém deve ter inventado essa história pra afugentar intrusos.
- Vocês vão entrar ou ficar conversando? – gritou Thur do meio do matagal. – Se não for só lenda, a gente sai devagar, fecha a porta e ninguém fica sabendo.
Os três avançaram até um enorme portal. Devia ter no mínimo dez metros de altura por cinco de comprimento. Era rodeado por runas antigas, diferentes de qualquer língua que os garotos tinham visto. Ordi guardou o mapa no bolso e se aproximou do batente, observando as inscrições.
- Será o que diz? Talvez seja um aviso.
- Com certeza – resmungou Amir, olhando na direção da cidade. Uma fumaça azul subia de cada chaminé. – Deve dizer “Fiquem fora, idiotas”.
Ordi e Thur se entreolharam rindo.
- Sério, é melhor a gente voltar – falou Amir. – Foi até divertido subir a colina até aqui, mas algo me diz que a gente está indo longe demais. Aliás, devem estar atrás da gente.
- Não estão nem ligando pra nós três – disse Thur. – Estão todos se divertindo no festival.
Ele se virou e começou a analisar o portal. Não havia sinal de maçaneta ou fechadura. Era feito em mármore negro e cravejado de esmeraldas. Thur deslizou os dedos pela pedra, tateando cada saliência, tentando achar alguma abertura. Abaixou-se e se deparou com pequenas inscrições na língua dos pequenos.
- Vejam isso!
- “Diga ‘abra’ à sua torre e os tesouros mais profundos serão revelados” – Amir leu, cético.
- Eu disse! – gritou Ordi. – É um tesouro, tem um tesouro aí dentro e basta dizer... – ele se levantou e olhou fixamente para o portal. – Abra!
Nada aconteceu. A não ser uma brisa gélida que soprou a colina.
- Espere aí – murmurou Thur. – Aí diz “Diga ‘abra’ à sua torre”. Entendeu? “Sua”!
Amir e Ordi continuaram sem entender, enquanto Thur coçava a cabeça e tentava encontrar as palavras certas.
- Abra... Torre de... Thur.
O chão tremeu e os garotos caíram assustados. Por todos os lados aves voavam, fugindo dos arredores da torre. O portal balançou, soltando poeira, e começou a se mover para trás. Foi se afastando dos garotos através de um corredor aparentemente sem fim.
Um vento surgiu de dentro da torre, soprando os cabelos dos três.
- O que foi isso? – resmungou Amir.
- E que cheiro horrível é esse? Parece carne podre – falou Thur.
- Ah, deixem de reclamar e vamos procurar o tesouro! – disse Ordi, extasiado.
Ele entrou na torre. Era um longo corredor que dava acesso a várias outras salas. O chão de granito ecoava os passos de Ordi, que tentava imaginar onde o tesouro estaria. Amir e Thur seguiram o garoto.
- Com certeza está atrás de uma dessas salas! – ele se aproximou da porta mais próxima, mas também não tinha maçaneta. Tentou empurrar, derrapando o pé no chão, sem conseguir mover a porta nem um milímetro sequer.
Os garotos começaram a inspecionar cada uma das salas. Não havia inscrição alguma que indicasse como abri-las.
Thur encostou o ouvido em uma delas e escutou um chiado. Na verdade eram vários chiados e grunhidos. O garoto arregalou os olhos e acenou para os irmãos ouvirem também. Eles ficaram ali impressionados com os sons da sala e não perceberam o que começava a invadir o corredor.
Thur sentiu algo espinhoso se enrolar nos seus pés. Olhou pra baixo e viu algo parecido com uma raiz. Ela rodeava sua pele e, com os espinhos, rasgava a carne. Ele gemeu de dor e caiu no chão.
Amir e Ordi perceberam as raízes e tentaram remove-las. Elas saíam de fendas nas paredes e no chão e se concentravam apenas em Thur.
- Vamos, tira! – o garoto chorava de dor. – Essa coisa está cortando a minha perna!
Ordi tirou um canivete do bolso e tentou cortar as raízes.
- É grosso demais!
De repente um estrondo, e uma das portas desmoronou, lançando pedaços de mármore pelo corredor. Amir lacrimejou devido a poeira e tentou enxergar através dos escombros. Um ser bege e robusto, de cerca de três metros de altura, surgiu dos destroços arrastando algo que parecia um gigantesco porrete. Era exatamente do jeito que as histórias contavam. Um genuíno troll das cavernas.
Ele avançou e socou Amir contra a parede. O garoto bateu a cabeça nas pedras e foi jogado ao chão. As raízes já tinham envolvido até a cintura de Thur, que se balançava ferozmente tentando se livrar dos espinhos. Seu sangue ia sujando o chão de pedra enquanto as raízes o puxavam pelo corredor.
Ordi correu em direção a Thur, mas foi impedido pelo porrete do troll que bateu em suas costas, jogando-o contra uma das portas. Em seguida caiu com o rosto no chão gelado. Sentia gosto de sangue na boca e não conseguia mover os braços nem as pernas. Abriu os olhos e viu Amir perto da entrada da torre, desacordado. Fez um esforço gigantesco e virou lentamente o pescoço para a direção oposta. Viu um vulto na escuridão do corredor. Era Thur sendo arrastado, riscando o chão com as unhas, gritando por socorro.
O troll passou por Amir e saiu da torre, rugindo ferozmente em direção à cidade.
As portas ao longo do corredor começaram a se abrir, uma após a outra. Ordi, paralisado, assistiu o fogo tomar conta da torre, enquanto criaturas horrendas saíam das salas. O pequenino fechou os olhos e sentiu as chamas queimarem seu corpo.
Gritos e barulho de asas. Era o que se ouvia nas Colinas Frias.


Darla passou por um grupo de crianças na sala de estar, olhou atentamente. Não estavam ali. O desesperou se apoderou dela. Resolveu procurar no pátio. Uma banda ao centro tocava uma música estridente, enquanto várias pessoas bebiam e dançavam. Dezenas de mesas de madeira se estendiam pelo lugar, onde as pessoas comiam e riam, comemorando a boa caça. Darla avistou Jareh no meio da multidão.
- Você viu as crianças? – ela gritou.
- Sim, várias! – ele riu e entornou uma caneca de cerveja. – Escolha uma!
- Estou falando das nossas crianças!
- Devem estar lá fora brincando com os outros garotos. Fique calma, hoje é dia de festa.
Ela sentiu um aperto no peito. Sabia que eles não estavam no festival. Não podia ser coincidência o mapa sumir junto com as crianças. Com certeza tinham ido à torre.
- Jareh, o mapa sumiu!
Mas ele não escutou. Um tremor abalou o pátio, derrubando mesas e fazendo a música parar. Um silêncio constrangedor instaurou no lugar, enquanto todos se olhavam assustados.
Em seguida um vendaval ensurdecedor invadiu o pátio. O vento pútrido somou terror a todos no lugar. Darla saiu correndo para a rua.
Centenas de pessoas murmuravam na avenida principal. Faixas de comemoração haviam caído. Comida e bebida se espalhavam pelo chão. Todos pareciam desnorteados, com medo do que poderia acontecer em seguida.
- Os meninos passaram por aqui? – Darla perguntou para um grupo de garotos na entrada do pátio.
- Por aqui não – respondeu um deles. – Mas acho que vi Amir na encosta da colina. Ele corria para alcançar alguém.
Um rugido ecoou ao longe. Todos se viraram para a gigantesca torre ao norte. Fogo saía de suas paredes e o céu começava a escurecer. Sons estanhos ecoavam pelas colinas. Sons demoníacos.
O caos dominou a cidade. Pessoas saíam de todos os lugares, pegando crianças pelo caminho, empurrando uns aos outros. A desordem apenas aumentava com todos tentando fugir ao mesmo tempo.
Darla ficou no meio da avenida, paralisada, olhando o norte. Não ouviu Jareh gritar para correr, não ouviu a sinal de alerta. Ela sabia que era sua culpa. Não havia escondido direito o mapa e agora seus filhos tinham acordado os demônios da torre.
Poucos foram os que conseguiram fugir das criaturas que desciam à colina. Poucos escaparam das trevas que há eras esperavam para tomar Nerdick.
Dizem que os que ficaram foram acometidos pela loucura e pelo terror que os demônios causam aos vivos. E não mais morreram, passando a eternidade sob a tortura da torre.
As Colinas Frias se tornaram o que é hoje: um lugar onde nunca é dia. Um lugar dominado pelos tesouros mais profundos da Torre de Thur.

Alcy Filho

Os Contos de Biodak - O último toque de Amdu






A fada, ainda aflita, pousou sobre o tronco queimado e observou a menina e o menino. A primeira ia à frente, os fios castanhos, embaraçados pelo vento, tocavam os galhos da floresta. Ela conhecia cada trilha, cada caminho por entre as árvores. A audição substituía perfeitamente a visão. Enquanto corria, imaginava um mundo colorido, que apenas aqueles olhos cegos poderiam ver.
O menino ia atrás. A cada dois passos tropeçava num galho. Era para ser uma corrida de cegos. A venda nos olhos serviria para equilibrar a disputa, mas ele não conhecia o caminho. Já não dava mais para contar nos dedos os arranhões adquiridos no percurso. O garoto decidiu que já bastava. Retirou a venda e esfregou os olhos que ardiam devido à claridade. Eles já não estavam na floresta que conheciam. O cheiro de cinzas invadiu as narinas do menino, que começou a tossir.
- O que aconteceu aqui, Yana? – ele gritou para a menina, parada logo à frente.
- Quieto! – sussurrou ela. – Não estamos sozinhos.
Uma gota de suor surgiu na testa do menino. Logo surgiram outras. O tempo mudou de úmido para infernal. Ele passou a mão pelos cabelos já encharcados, então congelou. Escutou um estrondoso barulho de asas. Quando olhou para cima o mundo girou. A última coisa que viu foi a face odiosa do monstro. Depois disso, caiu inconsciente sobre as cinzas da floresta.
A menina permaneceu parada. O corpo molhado totalmente enrijecido. Qualquer um que a visse pensaria que estava em estado de choque. Qualquer um menos o monstro. Com um baque ensurdecedor ele pousou sobre os galhos queimados. Cada momento ao lado da criatura era um convite à asfixia.
- Por que permanece em pé, garota? – perguntou o monstro. Sua voz fazia tremer cada grão de terra no chão.
Yana permaneceu calada, os lábios colados pelo suor.
- Não adianta ficar muda. Eu sou Ghiardo, o Senhor dos Dragões de Amdu. Enxergo o medo, escuto a mentira e cheiro o ódio. E você, menina, emana ódio em cada gota de suor.
- As árvores... – ela finalmente disse, com os dentes serrados, respirando fundo. – Por que queimou as árvores?
- Os propósitos de um dragão são complexos demais para um ser de sua estatura compreender. Seu companheiro deve ter percebido isso quando resolveu desmaiar e se entregar.
A menina fechou os olhos e deixou as lágrimas se juntarem ao suor, chorando num ódio silencioso.
- O que vai fazer com ele? – ela perguntou.
O dragão andou calmamente ao redor de Yana. Quando parou, seus olhos grandes e cegos encaravam os olhos brancos da menina.
- Não posso te ver – falou ele. – Mas a quilômetros fui atraído por seu cheiro. De repente sua estatura parece não mais importar.
As garras do monstro envolveram o corpo frágil da menina, que não tentou resistir. Quando ele impulsionou vôo, apertou as grossas unhas por sobre Yana, fazendo-a gritar.
O menino acordou e viu o dragão carregando a menina. Não conseguia se levantar nem falar, tal era o medo que o envolvia. Talvez se os tivesse seguido teria visto o monstro ser atingido pelo raio do Mago e Yana caindo no rio Cran.
Mas o garoto não presenciou nada disso. Em sua mente, e na de seu povo, ficou apenas a imagem da menina cega raptada pelo monstro alado.
Yana jamais voltaria a encontrar o irmão. Esteve até o fim de seus dias amaldiçoada pelo toque do último dragão de Biodak.

Alcy Filho


Imagem: Ìllume

Sobras secas





Quando a árvore perde os frutos
Ficam-lhe as folhas torpes, que logo secam,
E ao vibrar do vento se desprendem uma a uma
E caem sobre o solo já impuro
Formando e produzindo o fértil
Para novamente crescer e florescer em frutos.

Quem dera eu perder minhas torpes folhas secas.


Alcy Filho

Imagem: Josimar Dominguez

A Última Fala





De tudo que ocorria no culto, a parte mais esperada para Bruno era a última fala do pastor. Membros e convidados se levantavam e saíam da rotineira indiferença social para iniciar a sessão de cumprimentos. Alguns se limitavam aos bancos mais próximos, enquanto Bruno preferia explorar todo o templo. Afinal, aquele era um período muito rápido, mas também oportuno pra conhecer os membros. Ele mesmo não havia entrado no rol de batizados, mas os visitantes o viam como membro de longa data, um verdadeiro anfitrião. Isso porque ele se concentrava mais nos que ainda não se sentiam confortáveis no meio cristão.
Pois bem, quando completaram trinta dias que Bruno tinha colocado os pés no templo, eis que este não aparece no domingo. Ninguém sentiu nada de anormal. Isso apenas até a última fala do reverendo. Uma senhora percebeu a ausência de Bruno e logo a notícia correu. Porém ninguém sabia seu nome, pois ele nunca se apresentava, sentindo-se obrigado apenas em deixar os convidados confortáveis. Passou-se o dia, até que a fatídica notícia fosse dada.
No culto à noite a igreja se calou e escutou do reverendo que Bruno havia morrido de infarto fulminante enquanto dormia. Um burburinho tomou conta do templo, até que uma garota se levantou e pediu a palavra.
- Quando cheguei à igreja, poucos me acolheram. Dentre esses estava o Bruno, que todo domingo chegava com um sorriso e perguntava como tinha sido minha semana e se deixava à disposição para qualquer coisa. E foi por causa da hospitalidade dele que eu não desisti da igreja.
Enquanto a moça ainda estava de pé, um senhor se levantou e, pausadamente, disse como Bruno o havia recebido e acolhido. Essa atitude fez com que várias pessoas deixassem os bancos e dessem seu depoimento, todos sobre Bruno. Os membros da igreja, assustados, tentavam lembrar do falecido, mas poucos se recordavam. Isso porque suas consciências pesavam, pois além de não se lembrar de Bruno, também não se recordavam da última vez que haviam verdadeiramente acolhido um visitante.
Assim foi a estadia de Bruno na igreja. Bastou um mês para que mais de trinta pessoas se firmassem na fé. Sua atitude foi recordada por muito tempo por aquela igreja, que precisou perder um dos seus para amolecer o coração e abrir caminho não apenas para o templo, mas também ao corpo de Cristo.

Alcy Filho


Imagem: vnduan

Um inusitado movimento





Numa manhã como outra qualquer, num país corrupto de primeiro mundo, todos os políticos acordaram sob a mira de revólveres. Uma força-tarefa, idealizada em certo website, abrangeu cada município da evoluída nação. Os jornais noticiavam “Líderes ameaçados”, “Pânico na política”, “País em crise”. Nas ruas esse era o assunto da vez.
- Ficou sabendo?
- Do quê?
- Os políticos foram seqüestrados.
- Ah, não me dê falsas esperanças.
- Estou falando sério, veja!
- Deus do céu, é verdade mesmo? Quanta crueldade!
O mais famoso telejornal noticiava o vídeo entregue pelos seqüestradores. Na gravação, um senador lia uma carta, enquanto fuzis miravam seu crânio.
- Hoje fomos presos e sentenciados – leu o homem de terno, suando. – Sabemos que somos mentirosos por natureza e merecemos o mais alto castigo – ele parou um momento antes de continuar. – Pedimos que a polícia não tente nos resgatar. E não vamos pedir perdão por nossos erros, para que não haja chance de redenção.
Muitos que assistiram à transmissão ficaram com pena do senador que lia sua própria sentença de morte. Outros ficaram indignados pela coragem dos líderes em pedir que a polícia não se envolvesse. E muitos ainda concordaram com o mais alto castigo aos políticos, já que eles mesmos não queriam pedir perdão pelos erros. Já o restante dos espectadores resolveu mudar de canal e assistir a novela.
O fato foi que a força tarefa não durou muito tempo. Os integrantes começaram a se questionar o que aconteceria depois. Se realmente valeria a pena seguir com o plano. Protestos surgiram na rede mundial, em prol da soltura dos vereadores, prefeitos, governadores, deputados, senadores e, principalmente, do presidente.
E foi na primeira brecha encontrada pelo exército (já que a polícia havia sido descartada pelos reféns) que os seqüestradores foram encurralados, presos e sentenciados.
Metade dos criminosos foi parar na forca. A outra metade lotou as raras prisões de segurança máxima do país de primeiro mundo.
O líder máximo da nação lamentou o ocorrido e abriu uma investigação para apurar os fatos. Deste modo, toda terça-feira os políticos saem de suas casas e se dirigem às câmaras e senados para participar da mais nova CPI em andamento. E no restante da semana descansam. Mas engana-se você se pensa que fazem isto por menosprezar o cargo que exercem. Os políticos em seu descanso refletem sobre a vida. Sobre o que fazem, se é certo ou errado. Sobre o porquê da população nunca estar contente e sempre querer mais. E é nesse momento de juízo que afloram os pensamentos de esquerda, direita e mercenarismo. É daí que novos partidos brotam, novas idéias afloram e novos desistentes se afastam do cenário político.
E dizem por aí que estes afastados criaram um movimento. Parece algo novo e inusitado. Comunidades on-line só falam nisso, bolando estratégias e recrutando adeptos. Segundo fontes, antigos simpatizantes do senado estão formando um verdadeiro exército para seqüestrar e executar todos os líderes políticos.
Tal informação chegou aos ouvidos das autoridades, mas, sinceramente, para que se preocupar? Todos sabem que seria uma força-tarefa impossível de se cumprir e, caso acontecesse, a polícia estaria de prontidão para atuar diante do fato. Ora, o país em questão é civilizado, sem dívidas nem corrupção. Formado por pessoas de bom caráter e índole ímpar. Deviam é se orgulhar dos líderes que o próprio povo retirou do palanque. Afinal de contas, não estamos falando de um país de criminosos, mas sim de uma evoluída nação de primeiro mundo.

Alcy Filho

O Coadjuvante





Quando acordou imaginou que ainda dormia. Belisco aqui e ali, os olhos abertos. Não parecia estar dormindo. A mulher apareceu na porta, visivelmente confusa.
- Que dia é hoje? – ela perguntou.
- Não sei. Parece sábado. É, tem cheiro de sábado.
A estranha sensação continuou durante o lanche da manhã. O homem terminou de comer, penteou os cabelos louros e deu um beijo na esposa.
- Tem certeza que hoje é sábado? – perguntou ela antes que ele fosse embora.
- Não, e você?
Ela não respondeu e o homem não insistiu. Seguiu para o elevador e apertou o botão, que ficou vermelho e depois verde.
- Desce? – ele perguntou ao homem ruivo parado no elevador, o qual se assustou e ficou um tempo mudo. Então falou:
- É... Acho que sim.
Desceram boa parte dos andares sem ouvir a voz do outro. O homem ruivo parecia inquieto e inspecionava cada parede do elevador, movendo os olhos de pressa.
- Nós não nos conhecemos, não é mesmo? – perguntou o homem louro de repente.
- Pelo visto, não – respondeu o ruivo.
- Já não teve uma sensação de ter acordado, mas continuar sonhando?
- Como num sonho dentro de um sonho?
- Exatamente.
- Eu mentiria se dissesse que não.
De súbito os dois olharam para o chão do elevador que começava a inundar. Água entrava pelas portas que começavam a se abrir. O homem ruivo, desesperado, forçou as portas para fugir dali, já o louro, atônito, enfrentou a água e foi seguindo o desconhecido.
Os móveis da recepção boiavam e passavam pela entrada principal. Os homens saíram do prédio e nadaram até a avenida principal. A cidade tinha sido invadida pelas águas e pessoas por todos os lados nadavam procurando abrigo. Enquanto a maioria tentava entrar nos prédios, fugindo da enchente, o louro e o ruivo continuavam a adentrar a avenida, até que chegaram a um cruzamento.
Eles pararam, batendo com força os pés para não afundar, e olharam um edifício enorme. Nada mudava. As pessoas passavam desesperadas e subiam em carros e ônibus.
Foi então que algo mudou. O nível da água começou a subir. Todos pararam de nadar, vislumbraram uma onda gigante abater o edifício logo à frente. O homem ruivo começou a ofegar. Sentiu os olhos pesados, coração ritmar e o desespero a tomar conta.
- Agora sei que é um sonho! - gritou.
A onda se aproximou. O louro ficou em estado de choque e começou a afundar.
- Tenho certeza que é um sonho! – continuou o ruivo. – Tenho que acordar...
Finalmente a onda engoliu a todos. O louro observou de longe o ruivo sumir nas águas. Nenhum sentia a falta do ar. Apenas percebiam a escuridão que se formava ao redor.


Quando percebeu já estava na cama, acordado. Levantou e se olhou no espelho. Continuava louro. A mulher apareceu no quarto, perdida na própria casa.
- Acho que hoje é sábado – ela disse, olhando pra janela.
- É mesmo – concordou o marido. – Tem cheiro de sábado.
O homem louro terminou de lanchar, despediu-se da esposa e se dirigiu à porta, quando lhe surgiu a dúvida.
- Tem certeza que hoje é sábado?
- Bem, agora que você perguntou... – respondeu a mulher. – Parece que o sábado já passou.
O botão do elevador ficou verde e as portas se abriram. O homem louro viu uma mulher ruiva encostada no espelho, observando o teto.
- Desce? – perguntou ele.
Ela se assustou e encarou o homem.
- É... Acho que sim.
Ambos desceram calados, para fora do prédio, rumo à cidade inundada.

Alcy Filho

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Imagem: Pens Eye