Os Protagonistas


Leia antes: "O Coadjuvante"

O elevador era pequeno, mais de quatro pessoas causaria certo desconforto. O rapaz se virou e encarou o espelho. Imagem turva, embaçada. Mas os cabelos continuavam ruivos. A porta se abriu num ruído que lembrava a freada de um caminhão. Assustado, fitou o homem loiro que chamara o elevador.
- Desce? - perguntou o loiro.
- É... acho que sim.
Para o ruivo, tudo era real. Ainda não desconfiara da realidade.


Sarah batia repetidamente a caneta na mesa. O quarto escuro era iluminado apenas pelo rádio relógio, que marcava em vermelho-vivo “01:00 pm”. Tomás dormia tranquilamente na cama ao lado, amarrado por cintas de couro, deitado sobre o lençol branco com peixes azuis.
O barulho da caneta contra a mesa substituía o tique-taque inexistente do relógio na parede, cujo ponteiro dos segundos deslizava sem produzir som. Algo precisava entretê-la enquanto Tomás avançava nos estágios do sono.
Correu os olhos pelo quarto, observando a mobília e os aparelhos médicos, todos assumindo a tonalidade de vermelho emitida pelo rádio relógio. Subiu o olhar para o teto e viu um pequeno ponto azul piscar incessantemente. Levantou-se e analisou a máscara de dormir de Tomás. Bem acima do nariz um LED azul-turqueza piscava, sinalizando que Tomás havia entrado no estágio de sono REM. Sarah esboçou um sorriso ansioso. Agora seria questão de minutos.
Foi até o canto do quarto e ligou a luz escura. O lugar assumiu uma cor roxo-azulada, dando certa visibilidade. Pegou um caderno de atas em cima da cômoda ao lado de Tomás. Sentou-se novamente, caderno aberto, caneta posicionada, ansiedade aumentando.
Tomás começou a mover as mãos, girando ambas lentamente no sentido horário. Os pés, presos ao colchão, se agitaram contra as cintas. Sarah teve de conter o impulso de desamarrá-lo. Algo não estava certo. Era para ser um sonho tranquilo, porém ele começou a se debater como se levasse um tremendo choque.
Sarah olhou aflita para a porta aberta, ninguém no corredor. O corpo de Tomás sacudia de tal maneira a fazer a cama dar pequenos pulos. Se continuasse assim, logo alguém seria alertado pelo barulho. Porém, subitamente, ele parou. Cessou por completo os movimentos, deixando a cabeça recair sobre o travesseiro, encarando Sarah através da máscara de dormir, que agora emitia uma constante luz amarela.
- Tomás? – sussurrou Sarah. – Você está acor...
Tomás lançou com força a cabeça para frente, aspirando brutalmente o ar pela boca, como quem tivesse passado um longo jejum de oxigênio. Tentou mexer os pés e pulsos sem muito sucesso. Estava ofegante.
- Calma, Tomás – disse Sarah, tentando aparentar serenidade e se preparando para escrever no caderno. Você precisa se acalmar ou vai se esquecer...
- Não foi do jeito que ele disse!  – gritou Tomás, ainda respirando com força.
- Fale baixo! – Sarah levantou num pulo, fechando a porta. – Quer que alguém nos escute?
- Tinha água... – Tomás se esforçava para falar. – Muita água... A cidade toda estava inundada! Eu demorei pra cair em mim... Não testei direito!
- É normal. Fazia tempo que você não induzia – Sarah começou a desamarrá-lo. – Talvez a falta de prática tenha feito você sonhar diferente.
- Não... – com as mãos livres, ele desamarrou as pernas e se sentou na cama. – Era pra ser o mesmo sonho. Começou igual. O elevador, o cara loiro... Mas quando chegamos na recepção do prédio, estava tudo inundado!
- Tomás, nós três passamos muito tempo separados. Acho que só o fato de sermos irmãos não seja o suficiente.
- Você me escutou? O início do sonho era totalmente igual! Não tinha como dar errado.
- Então por que deu errado? – ela guardou o caderno e voltou a se sentar.
- Eu não acho que tenha dado errado – sussurrou Tomás, olhando diretamente para a porta, agora fechada. Não havia garantias que o corredor continuava deserto. – Acho que ele mentiu pra gente.
- Você ficou louco, é? Pelo amor de Deus, Tomás! Ele estava morrendo, pra que iria mentir?
- Não sei! – ambos ficaram em silêncio. Nada saíra como o planejado. – Foi o mesmo sonho, juro! Só que acabei descobrindo tarde demais que não era real, e isso fez com que eu me afogasse...
Sarah coçou a cabeça e observou o irmão sobre a cama. E se ele estivesse certo? No fundo sabia que isso era possível. Levantou-se e pegou de novo o caderno.
- Aqui, tome – entregou o caderno à Tomás e começou a retirar seus sapatos. - Vamos descobrir se foi ou não mentira.
- Não, não! - exclamou Tomás, colocando o caderno de lado. - Eu induzo de novo! Não vou deixar você se afogar...
- Tomás, eu não vou me afogar. Saia logo da cama e pegue esse caderno. Você sabe que é quase impossível você induzir duas vezes seguidas o mesmo sonho do Jonas.
Inconformado, ele se arrastou para fora da cama. Pouco tempo depois Sarah estava já atada à cama, com a máscara de dormir envolvendo o rosto. Tomás se sentou e pegou a mão da irmã, apertando com força.
- Não precisa se preocupar comigo... – disse ela, tentando se relaxar. – Eu já disse que não vou me afogar. Isso porque, diferente de você, eu nunca deixei a indução. Pode ficar tranquilo. No início do sonho eu já estarei lúcida.
E o quarto mergulhou em um profundo silêncio. Tomás se preparou para uma longa espera, contudo levou um susto ao olhar para o teto. Uma luz azul piscava repetidamente.
Sarah havia entrado.


Elevador pequeno. Com mais de quatro pessoas já ficaria desconfortável. A moça não se virou para encarar sua imagem embaçada no espelho. Passou a mão pelos cabeços. Por algum motivo sabia que continuavam ruivos.
A porta se abriu repentinamente. Ela lançou um olhar assustado ao homem loiro que esperava pelo elevador. Ele parecia perdido, deslocado.
- Desce?
- É... acho que sim. - as palavras saíram mecanicamente.
O homem entrou e a porta se fechou atrás dele. Agora era só esperar. O livro estava lá embaixo, em algum lugar.
E o elevador descia levando Sarah. Rumo à cidade inundada.

Alcy Filho

Desfocado



Quando olho para o mundo, não vejo as mesmas coisas que você vê.
Até a quantidade não é sempre a mesma.
Vejo um mundo diferente, turvo, duplo.
Às vezes embaçado, às vezes desfocado.
Não enxergo como você enxerga.
Seria porque sou sonhador?
Ou mesmo porque penso ser poeta?

Não.

É porque sou estrábico e míope :)

Alcy Filho


Imagem: frazerweb

Céu negro - Parte 1



Olhei no relógio. 17:30 e ainda ouvia barulho dos alunos nos corredores. Apertei meu celular na palma da mão, como se fosse adiantar alguma coisa. “Pede pro papai vir me buscar”, foi o torpedo que enviei para meu irmão. Ele estava doente, então sem chances de eu conseguir proteção na saída. Corri os olhos através da janela e lá estavam eles, escorados na grade perto da portaria. Diogo também estava no sétimo ano, mas tinha estatura de aluno do Ensino Médio. Seus dois amigos não eram maiores que eu, mas em força com certeza o eram.
Eu, sozinho na sala de aula, cruzei os braços para me proteger do frio. Fechei os olhos e tentei me imaginar em casa, deitado na cama debaixo do cobertor, protegido dos moleques da escola. Não funcionou. Abri os olhos e ainda estava na sala, de cara para o quadro negro. Só que agora uma figura baixinha e carrancuda estava ao meu lado, encarando-me por trás dos óculos fundo de garrafa. Era Sônia, a coordenadora, o terror dos alunos do Ensino Fundamental.
- O que cê tá fazendo aqui ainda? Todo mundo sabe: professor sai, aluno sai. Regra simples. Pega seu material e vai esperar lá na portaria. Bora, menino!
Catei meus lápis em cima da mesa e joguei dentro da mochila. Pendurei uma alça no ombro e saí da sala. Não falei sobre o Diogo e a surra que eu provavelmente levaria. Isso só agravaria as coisas. Quem sabe, por um milagre, meu pai já não estaria no corredor, andando de um lado para outro, esperando para ir embora. Não estava.
Minha sala ficava no fim do corredor do bloco de aulas. Comecei a andar sem pressa, passando lentamente pelas portas abertas, observando as moças da limpeza apagarem as artes feitas pelos estudantes nas carteiras. Eu devia ser o único aluno que ainda estava no Instituto. Era sexta-feira, não haveria educação física e até a academia já tinha fechado. Só restavam alguns adultos, que pouco se importariam comigo, sem contar com Diogo e seus amigos.
Fui subindo as escadas que me levariam à portaria. Fazia um frio sobrenatural, e a grande quantidade de árvores espalhadas pela escola colaboravam para o clima. As escadas ficavam ao ar livre, recebendo apenas uma proteção superior contra a chuva. Encolhi os ombros e continuei subindo, enfrentando a vento que uivava feito lobo.
Quando cheguei no nível da portaria, encarei o portão dos alunos aberto e Diogo de costas, rindo, provavelmente contando uma piada racista. Instintivamente dei meia volta e comecei a andar. Não queria apanhar. Minhas costelas latejavam só de pensar no punho do Diogo se enterrando no meu estômago, quebrando qualquer osso pelo caminho. Apertei o passo e resolvi olhar para trás. Eles também olharam. Diogo fechou a cara e deu um tapa nas costas de cada um dos amigos. Vieram atrás de mim.
Corri em direção à biblioteca, na esperança de me esconder até o Instituto fechar. Quem sabe eu não passava a noite por ali? Gelei quando avistei a porta fechada e as luzes apagadas. Rumei pelo pátio, depois subi as escadas para o bloco 400, onde ficavam os laboratórios. Ouvi risadas atrás de mim. Tinha de me esconder. Tropecei no último degrau e deixei a mochila cair.
Passei por dentro do bloco e abri o portão que dava acesso ao gramado nos fundos do Instituto. Diogo gritou atrás de mim.
- Ô, bichinha! Cê deixou sua bolsa cair.
Desengonçado, escalei um pequeno barranco e me apoiei num velho jatobá. Parecia que todo oxigênio do mundo havia acabado. Coloquei a mão no peito, ofegando desesperadamente. Diogo passou pelo portão, sem muita pressa, com um sorriso malicioso no rosto. Segurava minha mochila em uma das mãos, balançando de um lado pro outro.
- Escutou não? - falou. - Sua bolsa caiu no chão.
Jogou com força a mochila em mim. Protegi com um dos braços e agarrei antes que atingisse meu rosto. Os amigos dele ficaram encostados no portão, fazendo o papel de vigias. Diogo foi se aproximando, até ficar a um metro de distância.
- E aí, bichinha? Tava macho hoje, falando alto e tudo mais... Aconteceu alguma coisa?
Não consegui responder. O medo, e talvez o frio, me congelaram. Só o que consegui foi erguer o corpo e tentar segurar o choro que estava por vir.
- Num vai chorar, né? - disse Diogo, agora se aproximando mais ainda.
Ele me lembrava muito o namorado da minha mãe. Pele branca, cabelo liso e castanho-escuro, penteado de qualquer jeito. A camiseta era bem apertada para mostrar os músculos que fariam um estrago no meu rosto.
- Agora cê vai aprender a calar essa boca. E também vai aprender que viadinho não fica se mostrando pra ninguém.
Diogo levantou o punho no ar. Fechei os olhos e esperei o soco. O que senti foi algo segurando meu pescoço. Será que ele iria me sufocar? Agarraram meus braços e pernas. Abri os olhos, a visão meio turva, e pude enxergar o vulto dos meninos à minha frente, andando de costas, aparentemente apavorados com alguma coisa.
Tentei ver o que me segurava, mas quando dei por mim, estava sendo puxado para baixo. Senti terra entrando pela bermuda, espinhos arranhando minha perna. Novamente fechei os olhos, e fui me deixando ser tragado. Não conseguia respirar. A pressão era imensa, e pensei que seria esmagado a qualquer momento. Foi quando o solo abaixo de mim cedeu. Com um baque surdo, caí em uma superfície lisa e gelada.
Fiquei acordado por alguns segundos antes de apagar. Acima de mim, as estrelas brilhavam fracas, pairando em um céu negro.
Ouvi chamarem meu nome. Tolos. Nunca me achariam ali.
Continua...

Alcy Filho



Orquestra de pés





Os olhos tentam abrir
Inchados, doloridos.
Pés chutam
Esmagam
Pisam.
Uma sinfonia irregular
Que quebra ossos
Quebra óculos.
Sinto sangue nas mãos
Nos pés
Na boca.
Ouço gargalhadas, gritaria
Toca o sino da escola
E finalmente cessa.
A orquestra de pés se afasta
Risos, palmas
Todos de pé
O espetáculo acabou
Próxima sessão:
Amanhã e depois, e depois.
Alguns apelidam:
Billy, Bolly
Bully, Bullying.

Eu chamo pelo nome:
Crueldade.

Alcy Filho

Jogo de palavras




Penso em fazer poesia
Apenas penso e desisto
Pois clichês e pieguices
E sentimentos sem sentido
Enchem meus versos
E destroçam minhas idéias.

Penso em fazer poesia
Apenas penso
Pois o que crio é um jogo de palavras
Tosco e redundante
Que de poesia, só tem as rimas.

Alcy Filho


Imagem: Kuriru


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Depois deste poema parei de tentar me forçar a escrever. Deixemos a inspiração fluir normalmente. Quero escrever mais do que um simples jogo de palavras ;)  #revoltajapassou

No elevador




      Quem conhece o RPG, sabe que uma partida pode gerar situações e histórias muito interessantes. Alguns anos atrás, quando iniciei minha faculdade, fiquei sem tempo de reunir os amigos para jogar. Até porque grande parte do meu antigo grupo se separou, indo cada um para um curso. Demorou pra conseguirmos nos reunir novamente.
      Enquanto isso, minha vontade de jogar continuava. Nas minhas andanças pelo Google encontrei o portal RPG Online. Através de um programa de bate-papo adaptado, era possível rolar partidas de RPG sem sair de casa. Não seria a mesma coisa, mas quebrava o galho. Procurando salas de jogo, encontrei uma Mestre, a Isis Bianca, interessada em narrar uma história curta, uma espécie de conto, em que cada participante descreveria as ações de seus personagens. Outro jogador e eu fomos escolhidos para a primeira sessão. No bate-papo tínhamos os apelidos de Makal e Kenrious, respectivamente. Escolhemos então os nomes dos nossos personagens (ele descreveria falas e ações do Marcos, e eu as do Nenzi, que agora mudou para Daniel). Todas as descrições do ambiente, e como ele reagia às nossas ações foram descritas pela Isis. Nossa sintonia em criar a história foi enorme, e culminou no conto "No elevador", publicado no portal RPG Online.
      O conto abaixo é o mesmo, contando com poucas alterações (como o nome do meu personagem). Espero que gostem ;)


      Um elevador, um prédio de escritórios. Trabalho, problemas, cansaço, tarefas sem fim que parecem tornar qualquer sinal de humanidade tão distante quanto um sonho. E então, um solavanco, e dentro da caixa de metal dois estranhos estão presos. Estranhos? Nem tanto. Já se viram ao certo, mas, na correria, são apenas dois autômatos, dois rostos na multidão. Mas agora não há multidão. As tarefas e a loucura do cotidiano parecem ter parado junto com as engrenagens do maquinário. Talvez constrangimento, talvez nervosismo, mas estão sós, os dois, presos num elevador.
      Marcos leva as mãos à cabeça, em um ato de cansaço e desespero. "Não, agora não. Por que isso?". Virou-se, apertando mais algumas vezes o botão que levava ao térreo, sem sucesso. Suspirou e se encostou com desânimo na parede do elevador. Daniel tenta não olhar para o lado. "Logo hoje..." pensa. "Preciso sair daqui". E procura um botão de ajuda no elevador. O botão cede em vão. O elevador não se move. Apenas um som surdo ecoando pelo fosso escuro abaixo e acima. O ar ali é parado, a luz, estéril e fria. No espelho do fundo, como se outros dois estivessem em posição semelhante, em um outro universo improvável.
      Marcos diz: - Espero que não tenha muitos compromissos hoje. Algo me diz que isso vai demorar... Ele se senta no chão do elevador, suspirando, desanimado.
      Daniel olha para o teto procurando algo. Como se quisesse achar uma saída. De soslaio, observa o estranho. "Realmente não posso ficar aqui...", pensa. Respira fundo e encara o sujeito: - Tem um cigarro? - pergunta.
      Marcos sorri. - Não fumo camarada... E acho que aqui não seria uma boa ideia. Iriamos morrer sufocados - olha em volta, vendo que a ventilação ali é mínima - Já vi você algumas vezes por aqui... Trabalha em que setor?
      Daniel volta a olhar para o teto. - Não trabalho aqui... Tem certeza que não tem um cigarro?
- Só se alguém colocou algum na minha calça... - puxa os bolsos da calça para fora, deixando-os do avesso - Realmente, nada... - suspira.
- Ah...Um bom cigarro nessas horas alivia. É uma pena não fabricarem elevadores para fumantes... "Se eu gritasse, alguém ouviria? Acho que não...", pensa Daniel. Ele se senta e observa o outro, sem desviar o olhar.
- Humm... Acho que venderia, ao menos - diz Marcos. - Não sei qual a graça em fumar. É fedido, faz mal, e te faz gastar grana. Qual a vantagem?
- Não sei... Não fumo. Mas nessas horas, penso em começar.
Marcos ri: - Essa foi ótima... Mas, se não trabalha aqui, o que veio fazer?
- Preciso falar com alguém...
- À trabalho?
      "Ele acertou...", pensa Daniel.
      No intervalo entre as palavras, o zumbido da luz. Um som antes mal percebido, pode ser quase insuportável agora, se você não puder com o silêncio. Talvez por isso a busca pelas palavras, mesmo que sobre o nada, sobre algo que pode não fazer a diferença. No relógio, mais um minuto passa. Mais um minuto de suas vidas, se esvaindo a cada segundo.
      Daniel diz: - Qual o motivo disso? Dois estranhos em um elevador. A quê isso leva?
- Não sei... - diz Marcos. - Li um livro uma vez em que dois estranhos ficavam presos no elevador. Eles aprendiam lições que mudariam radicalmente a vida dos dois. Bem, não acho que seja igual aqui, mas é interessante a ideia.
- Não penso que você tenha algo a me ensinar.
      Marcos sorri. - Todos temos cara! Todas as pessoas tem algo para ensinar, e que te faria ficar pensando durante horas... Ou anos...
      Daniel se levanta e começa a bater o pé com força no chão. - Isso te ensina algo?
- Sim... Que posso confiar nos fabricantes de elevadores. - Cruza os braços, suspirando outra vez.
      O som retumba no vazio do fosso e o elevador balança, sustentado pelos cabos de aço. Daniel para e olha novamente para o estranho, agora com um sorriso no rosto: - Se morresse, alguém sentiria falta de você?
      E mais um minuto se passa, sem que haja sinal de qualquer mudança, a não ser as que eles puderam causar. Os últimos ecos dos chutes de Daniel ainda se ouvem, fracos. Marcos diz: - Talvez... Mas acho que eu é que mais sentiria falta de mim mesmo. Talvez algum amigo, se é que tenho algum de verdade. Não sei...
- Amigos... Só servem pra nos trair e revelar que amizade não existe. - diz Daniel.
- Humm... Alguma lembrança amarga? - pergunta Marcos, fitando-o com atenção.
      Daniel encosta na parede. - Lembranças? Prefiro não guardar. No espelho, o outro Daniel encosta também. - Afinal, todos morrem, não é mesmo? Pra que guardar lembranças de futuros mortos?
      No relógio, os segundos piscam implacáveis.
- Exato, todos morrem. - diz Marcos. - Mas enquanto vivemos, temos nossas lembranças. Elas nos mantem vivos. Como acha que seria se acordasse todo o dia sem lembrança alguma? Imagine levantar de manhã e não saber nada de nada. Nem seu próprio nome, ou de onde veio...
      "Isso não vai me levar a nada... Será que chego a tempo?". Daniel se arrasta na parede até se sentar no chão.
- Na verdade, eu me lembro de algo. Lembro dele ainda vivo... Seu sorriso era o único que conseguia me contagiar. - abaixa a cabeça.
- Um parente? - pergunta Marcos, atento.
- Parente? Não... Acho que nenhum parente teria me feito tão feliz - Daniel levanta a cabeça. - Sabe, amizades estão fadadas a terminar. Não quero mais iniciar algo com fim pré-determinado.
- Então porque vive, se a vida tem um fim pré-determinado?
      "Acho melhor desistir! Não vão me deixar entrar...", pensa Daniel. - Está dizendo para eu cometer suicídio?
      À luz fria, os dois homens sentados, no chão de uma caixa de metal pendurada no meio de uma construção de aço e concreto. No entanto, estão vivos, e é como se uma fina abertura se abrisse na casca que repousa sobre a realidade, sob a qual todos buscam manter a vida muito bem escondida e... congelada.
- Só estou dizendo que você está encarando as coisas de modo errado. Não temos que pensar que algo está fadado a terminar. E sim fazer valer enquanto durar. - diz Marcos, e suspira.
- É o que estou tentando - Daniel passa o dedo no chão. Como se desenhasse algo.
      Marcos se mantem silencioso por um tempo. Então pergunta: - Qual era o nome dele?
- Carlos... Meu melhor... - "Amigo", pensa. Daniel abaixa novamente a cabeça. Algo começa a pingar no chão.
      Marcos olha para o teto, como se pudesse ver através dele e admirar o céu e as estrelas. - Valeu a pena? A amizade? - pergunta.
- Naquele tempo sim. Mas agora é inválida - Daniel se levanta de repente. Enxuga os olhos. - Odeio essas ceninhas sentimentais.
      Por fim, um solavanco, e o elevador recomeça a jornada rumo ao seu destino. E qual seria ele? O trabalho, o tédio, o apressado corre-corre, eclipsando a luz das estrelas, e até mesmo a do sol, por trás de coisas inúteis que todos perseguem como moscas? Rumo a amores perdidos, impossíveis, malfadados e improváveis? Ou rumo a um outro elevador, apenas maior, e mais abarrotado?
      Daniel se endireita e olha para a porta do elevador. Marcos pergunta: - Mudaria algo? Faria diferente se pudesse voltar atrás? Teria escolhido não tê-lo conhecido? - Agora fitava Daniel, sério, mas atencioso, compreensivo.
- Nunca escolheria algo assim...
      O elevador caminha e os números mudam no mostrador. E mais um minuto. Daniel suspira e olha para o teto. Marcos levanta-se, sorrindo, de um modo satisfeito e amigável. Aproxima-se, ficando de frente para a porta e ao lado de Daniel. Coloca a mão em seu ombro. - Então valeu a pena. São essas lembranças que te fazem humano.
      Daniel olha para o homem e dá um profundo sorriso. Seus olhos em paz.
      E a porta se abre. Olhares impacientes de outros usuários que esperavam sua vez e um técnico que, ainda abaixado ao lado do painel de controle do elevador, ri nervosamente, mas satisfeito, pois seu trabalho estava concluído.
- Bem vindos de volta...

Isis Bianca, Makal e Kenrious (Alcy Filho)

Só em Ti, Senhor




Composição: Alcy Filho e Bruno Moraes
Produção: Fábio Dias
Álbum: No coração de um amigo (Bruno Moraes)

Quando forças não posso encontrar
O coração já não posso escutar
Se os momentos de dor já não posso aguentar
Tua mão me levanta
Fortalece minha fé
Cura minhas feridas
Me faz continuar

Só em Ti, Senhor
Eu posso encontrar
Esperança na dor
Forças pra caminhar...

Não me deixe esquecer
Que grandioso Tu És
Eis-me aqui, Senhor
Quero carregar a minha cruz...

Obrigado, Senhor
Obrigado, Jesus
Obrigado por Tua liberdade
Obrigado, Senhor

Obrigado, Senhor
Obrigado, Jesus
Obrigado por Teus livramentos
Obrigado, Senhor

Tenho de andar




Sempre me atraso
Tenho de andar
Não possuo asas
E nem saberia usar.

Há quem alcance
Aqueles altos edifícios
E pule de telhado em telhado
Coisa que não consigo.

Por isso caminho pelas ruas
Velhas e poeirentas
Subo por elevadores
E escadas quebradas
Todos de um tempo distante
Quando ninguém sabia voar.

Sempre me atraso
Não sei voar
Por isso tenho de andar
Sempre.

Alcy Filho


Imagem: bittertaste

O que é Biodak?



Biodak surgiu da minha paixão pelo RPG. Foi ele o responsável por abrir minha mente, fazendo universos e histórias brotarem na minha imaginação. De todos os mundos, o mais desenvolvido foi Biodak, que na verdade é um continente. Nele vivem criaturas fantásticas, tais como elfos, humanos e anões. A minha influência é clara: Tolkien. Mas que escritor de fantasia medieval não é influenciado por ele? Pra falar a verdade, sinto-me honrado quando alguém diz que meus textos lembram os dele. Sempre tento colocar minha personalidade, e um pouco de originalidade na história, mas sei que Tolkien acaba visitando todas elas.

Para contar os inúmeros eventos de Biodak, resolvi começar a série “Os Contos de Biodak”. Assim, vou apresentando aos poucos os acontecimentos e ambientando os leitores nesse continente que não para de crescer.
Então, se você quer conferir desde os primeiros contos que escrevi (alguns só podem ser entendidos se lidos na ordem correta), segue a lista completa:

O último toque de Amdu
A Torre de Thur
Três desejos do oásis
Destroços e Retalhos - Parte 1
Cinco criaturas do norte
Mundo Escuro

Os Contos de Biodak - Cinco criaturas do norte




          Durante séculos o povo de Hur viveu recluso em seu próprio reino. As terras eram demarcadas ao sul pelas Montanhas Altares, ao oeste pelas Colinas Lunares, ao leste pelas Montanhas Caldir e, por fim, delimitadas ao norte pelo Paredão de Akina.
          Somando com a história dos pequenos de Nerdick, e com os humanos em Wadoj, a história dos elfos de Hur é a terceira a tratar de êxodo. Ela conta como eles abandonaram o reino, seguiram a estrada Perk e se tornaram o Povo do Lago. Nesta primeira parte são mostradas as criaturas que causaram a fuga pelas Montanhas Caldir.


          O rei alisava seu manto de seda tentando se lembrar da última vez que o tinha usado. As assembleias eram raras, assim como as decisões provindas das mesmas. Os representantes de cada distrito se reuniam para, durante dias, tratarem dos problemas do reino.
          O assunto em pauta parecia novo e mais polêmico que os anteriores. Nada que por si só chamasse a atenção do rei, que começara a admirar um pássaro construindo um ninho em uma das janelas do salão.
- Vossa Majestade quer dar sua opinião?
          A voz do conselheiro Aldo trouxe o rei de volta a realidade. Dezenas de olhos ansiosos encaravam o herdeiro da coroa, sentado na ponta da mesa bronze.
- Bem, poderiam me colocar a par dos fatos? – perguntou o rei, visivelmente perdido no assunto.
          Os representantes trocaram olhares apreensivos enquanto Aldo fazia um resumo do que havia sido discutido.
- Erani, o representante do distrito de Altar, propôs a exploração da estrada Perk além das Montanhas Caldir.
          Um burburinho tomou conta do salão. Erani começou a discutir com alguns representantes que discordavam de sua proposta. O rei entendeu o porquê de tanta polêmica.
- Vejo que o problema que enfrentamos nesta assembleia – começou ele, fazendo o salão se silenciar. – envolve mais que interesses individuais. O que o nosso companheiro de Altar propõe é explorar a estrada Perk, correndo o risco de terminar como nossos antepassados que ousaram transpor aquelas montanhas...
- Vossa Alteza me perdoe, mas tenho que frisar... – de repente Erani parou e percebeu o insulto que cometia ao interromper o líder. Porém o rei não pareceu se importar e acenou para que o representante continuasse. – Recordo-me bem das histórias sobre nossos antepassados que nunca voltaram ao passar pelas Colinas Lunares, ou ao tentar transpor as Montanhas Caldir. Mas os tempos são outros e os perigos que um dia dominaram tais regiões, hoje podem estar extintos.
          Os representantes voltaram à discussão, alguns inconformados, outros a favor de Erani. O falatório foi interrompido por um jovem mensageiro que entrou apressado pelo portal principal. Estava sujo e cansado de uma longa viagem. Passou correndo pelo tapete vermelho que atravessava o grande salão real. A luz do dia começava a abandonar o salão e as sombras das poltronas se alongavam pelo chão de pedra polida.
- Mensagem do Paredão! – gritava o mensageiro, ao chegar perto do rei. – Tenho uma mensagem do Paredão de Akina!
- Tragam água e providenciem hospedagem ao nosso jovem aqui – disse o rei a um grupo de camareiras que assistia a assembleia. – E você, mensageiro, transmita a mensagem.
          O jovem tomou fôlego e falou pausadamente.
- Os observadores da segunda torre de Akina avistaram uma criatura. Uma grande criatura. Disseram que ela voava sobre as árvores do paredão e, por vezes, descansava nas rochas e observava a torre.
          O mensageiro parou e tomou a água que a camareira havia buscado.
– E também afirmaram que um incêndio se formou no paredão, exatamente no local onde a criatura sobrevoava.
- Quando tais fatos ocorreram? – perguntou o rei.
- Há duas semanas.
- Duas semanas? – bradou o rei, espantado. – São três dias a cavalo da segunda torre até aqui! Por que demorou duas semanas para transmitir a mensagem?
          Trêmulo, o jovem tomou outro gole d’água.
- O problema é que essa criatura foi embora logo após o incêndio e não se mostrou durante uma semana. Porém, após este prazo, ela voltou a ser avistada e acompanhada de mais quatro dela. No dia seguinte fui enviado a cada distrito, levando a mensagem da criatura e alertando para a evacuação.
          Um novo pesar caiu sobre os olhos do rei. Percebeu que algo maior residia na mensagem do jovem.
- Evacuação? – perguntou ele, com a voz embargada. – Tem certeza que a ordem que lhe deram em Akina foi de evacuação?
- Sim, Alteza. – o jovem parou de novo. Fazia um tremendo esforço para transmitir aquelas palavras. – Quando a mensagem me foi passada, o distrito de Akina reunia exércitos para enfrentar as cinco criaturas, que voavam para a cidade queimando tudo a sua volta.



          Os pastos ao longe ardiam em chamas. O comandante Daroy tomou a frente do campo de batalha. Ele sempre imaginou que um dia algo parecido iria acontecer. Havia um motivo de seus antepassados terem construído torres de vigilância na região do Paredão de Akina. Aquelas criaturas deviam ser a ameaça que rondou Hur centenas de anos atrás.
          Daroy colocou o binóculo e avistou o pasto adiante. Nenhum sinal das criaturas. Com certeza iriam atacar de surpresa. Era hora de preparar os soldados. Muitos tinham atendido ao chamado de alerta, vindo de distritos vizinhos. Daroy achava que poderia conter as criaturas, enquanto o resto do reino evacuava.
          O comandante montou seu cavalo e começou a andar em frente o pelotão.
- Guerreiros élficos de Hur, hoje é nossa responsabilidade proteger nosso reino. É nossa responsabilidade conter as criaturas enquanto nossas mulheres e crianças procuram um lugar protegido nas montanhas – Daroy parou e lançou o olhar ao norte. Algo parecia se mover nas chamas. Tinha de terminar o pronunciamento. – Hoje lutaremos não só pelo rei, mas por tudo que é nosso por direito. Não deixaremos que as criaturas do norte nos atinjam, pois estamos preparados. Estamos preparados para conter o que for. Em nome de Hur!
          Os gritos dos soldados ecoaram pelo pasto. Gritavam “Hur!”, com toda a força de seus pulmões. O comandante fez um sinal e os gritos cessaram.
- Hoje não somos maridos, não somos empregados, não somos apenas elfos. Somos os elfos de Hur e mostraremos não só força, mas sabedoria!
          Mais uma vez os soldados comemoraram e gritaram o nome de Hur. Tambores tocaram invadindo o campo de batalha com o hino do reino. Estavam preparados, para o que fosse.
          Uma trombeta soou e os tambores e a gritaria cessaram. Os soldados ficaram a postos, com visão focada nas asas que sopravam o fogo logo à frente.
- Arqueiros, preparar! – gritou Daroy. – Apontar.
          Finalmente a criatura saiu das chamas e voou alto pelos céus, em direção ao pelotão. Era gigantesca, as asas pareciam de morcego, tinha chifres de marfim na cabeça e por toda coluna vertebral. Batia com força intimidadora as asas, preparando as garras dos pés para atacar os soldados.
          O comandante engoliu em seco ao ver a criatura, era muito pior do que jamais teria imaginado. Colocou todas as suas esperanças nas flechas dos arqueiros. Esperou a criaturas descer dos céus. Foi quando ela deu um rasante sobre o pelotão que ele gritou.
- Fogo!
          Centenas de flechas invadiram o céu, atingindo a criatura. Mas nenhuma surtiu efeito e o monstro voou sobre os soldados, derrubando-os com suas garras. Novamente voltou aos céus.
          Daroy observou o grupo de soldados caídos e pegou seu arco.
- Preparar! – sua ordem foi repetida pelos oficiais espalhados pelo campo. – Apontar!
          Novamente o monstro desceu dos céus, mirando um grupo de arqueiros no meio dos soldados. O comandante gritou “Fogo!”, e mais uma vez as flechas ricochetearam nas escamas na gigantesca criatura. Ela sobrevoou os soldados e, de suas narinas, surgiram labaredas de fogo.
          Os arqueiros correram pelo campo de batalha, ardendo em chamas. Daroy preparava-se para o ataque, quando a trombeta voltou a soar. Virou o cavalo para o norte e viu outras três criaturas voarem pelo campo.
          Daroy acenou para os oficiais que comandavam os canhões. Esperou. Os monstros avançavam de maneira determinada. Esperou. De súbito as criaturas pararam e aterrizaram logo à frente. Centenas de olhos élficos as observavam, sem terem a mínima ideia do que viria depois. Elas abaixaram o corpo e praticamente se deitaram nos campos.
          O comandante abaixou seu arco e olhou através do binóculo. Os monstros estavam com a respiração ofegante, igual a crianças com asma. Pensou que talvez haviam desistido. Tolo pensamento. Uma repentina fumaça saiu das narinas de cada criatura e inundou o campo. Era impossível enxergar. Os tiros de canhão surgiram sem autorização do comandante.
          Daroy chicoteou de leve seu cavalo e saiu em disparada pela fumaça. Ultrapassou corpos em chamas e soldados que corriam para todos os lados, hipnotizados pelo medo. Até que conseguiu sair da fumaça. Olhou para os céus e avistou as criaturas voando alto, mirando sem errar e mergulhando o exército em chamas.
          Em um movimento inútil, empunho seu arco. Seus pensamentos eram outros. Não conseguia se importar com os soldados, nem com o reino, nem com aquela batalha. Só pensava na mulher e nas crianças. Talvez o ato de mirar no casco impenetrável das criaturas significasse algo em sua mente. Absorto em seus pensamentos, não ouviu o leve pouso do monstro atrás de si. Sentiu um calor infernal, como se o mundo inteiro fosse uma enorme bola de fogo.
          Daroy abaixou o arco e virou o cavalo em direção à criatura. Ficou frente a frente com o monstro que destruiria grande parte de Hur. O grande lagarto bufava e tinha o olhar distante. Olhos brancos, cegos. Daroy abaixou a cabeça, quando a gigantesca pata o atingiu.
          E o fogo cessou.

Alcy Filho


Imagem: treijim